quinta-feira, 30 de abril de 2009

Lembro-me...

..de ter andado na faculdade de Agronomia e Silvicultura da Universidade de Luanda, isto nos tempos em que era meu objectivo conciliar a paixão pelas árvores com o amor ao ensino e ao ensinar. Como seria bom, pois, ensinar os jovens a popular as terras áridas com as boas e frondosas árvores que tudo nos dão, desde frutos a sombra, desde calor às fortíssimas traves - sustentáculo dos telhados e das paredes das casas, desde oxigénio a beleza para os olhos e abrigo para os passarinhos. E nem se falava ainda em aquecimento global, nem nos excessos de dióxido de carbono na atmosfera. Que tempos de inocência aqueles!

Nesses tempos, iniciei o curso com várias disciplinas interessantes, entre elas uma tal Botânica Agricola, em que se leccionavam temas de fisiologia vegetal. Agarrei-me ao assunto com entusiasmo, e lá fiz os testes escritos correspondentes, tendo obtido a média de dezasseis, que por acaso foi a mais elevada da turma. Já me via como engenheira silvicultora, conduzindo de botas de cano alto um batalhão de trabalhadores num campo desértico, com o verde futuro na imaginação. Entretanto, tinha de ir, antes de tudo isso, defender o meu precioso dezasseis...

Lembro-me de estar sentada sozinha, em frente do professor, muito nervosa, transpirando nas palmas das mãos (algo que jameis me tinha sucedido nem voltou a suceder) enquanto os meus colegas, sentados mais atrás, se preparavam angustiados para eles também e a seguir, defenderem as classificações obtidas. Como àparte, devo esclarecer que nenhum de nós ficou, porém, traumatizado pela tremenda agressão psicológica de fazer um exame oral. Cheio de bonomia, o professor (o Engº T.M.) foi-me fazendo perguntas...às quais respondi o melhor que pude e soube, esfregando as mãos nas calças de ganga. Mas o facto é que a pouco e pouco fui acalmando, eu conhecia aqueles assuntos, eram-me familiares e até agradáveis. Creio que cheguei mesmo a ser eloquente! E a certa altura o Engº T.M. disse-me: a senhora já confirmou sem dúvida o seu dezasseis, mas agora tenho aqui, para si, algumas perguntas mais difíceis...deseja continuar? Cobardemente, e contra a vontade do meu bom professor, que outra coisa não desejava senão subir-me a nota (talvez lhe parecesse que eu sabia a matéria a um nível um pouco acima do dezasseis...mas nada me daria de mão beijada...) recusei-me a continuar, alegando que o dezasseis estava muito bem e apropriado aos meus conhecimentos. E pus-me ao fresco, tratando de ir beber uma pepsi-cola no bar da universidade.

Fiquei com dezasseis em Botânica Agrícola, e passe a cobardia demonstrada, não fiquei nada mal. Guardei a amizade ao velho professor T.M., de quem as voltas da vida infelizmente me separaram por completo. Talvez possa ser, hoje, um professor jubilado do ISA, mas o mais provável é que ensine neste momento a sua especialidade aos anjinhos - se no céu se aprendem coisas sobre a vida das plantas verdes.

Belos tempos. Tempos de exigência e rigor, que porém não excluíam bondade, nem compreensão, nem entreajuda. Onde estais?

Não cheguei a ser engenheira silvicultora. Continuo a amar as árvores, é certo, mas de longe, com um amor inoperante, ignorante e bastante pacóvio - nada mais. Quiseram os fados que me tornasse professora, mas não de silvicultura; afinal de contas, das matérias que estão na base das árvores e dos homens: electrões, protões, fenómenos físicos e reacções químicas, que descrevem e justificam tanto o modo como funciona o cérebro humano como as correntes no xilema das sequóias. Tudo bem; o mal não está no assunto. Todos são bons, todos são úteis. O mal está no ensino.

No ensino de hoje, para que fique bem claro.

quarta-feira, 29 de abril de 2009

Endeusamento rápido

A páginas tantas, a rainha Cleópatra, contrariada com a prosápia dos generais romanos, terá dito a Júlio César : Vocês tornam-se deuses muito depressa…

Hoje em dia, e pelo menos no nosso amado jardim à beira mar plantado, também há quem se torne não digo deus, mas pelo menos professor, muito depressa – e quer-me parecer que depressa demais, e com facilidades excessivas.

Examinemos rapidamente como se fabrica um professor em Portugal, nos dias que correm. Para começar, às licenciaturas via ensino candidatam-se não os melhores alunos, bem longe disso, mas os de secundário mais arrastadito, empurrados os exames de 11º e de 12º ano pela goela abaixo à custa de inflação nas classificações internas, como quem empurra um remédio amargo com uma bebida doce. Até há pouco tempo, Universidades havia que aceitavam alunos nesses cursos com média negativa em algumas disciplinas, o que seria de bradar aos céus se não parecesse ser aceite passivamente por todos ( e antes de prosseguir devo afirmar bem claramente, aplicando-se este tanto às minhas palavras presentes e futuras, que obviamente existem excepções – que afinal de contas, e se bem me lembro, apenas servem para confirmar a regra…)

Já por aqui começa mal a coisa, mas tem a sua continuação nas próprias Universidades, ou pelo menos em algumas (há as excepções, etc. etc.) Deste modo, nas várias disciplinas, o aluno que atingir a média de 9,5 valores por frequências ou testes já tem a cadeira feita, sem ter de prestar mais nenhuma prova do seu saber e competências naquelas especialidades. Nem procuremos saber como obteve o dito aluno a elevada classificação de 9,5 numa escala de zero a vinte, dado que não é incomum que a tenha conseguido através de processos reveladores de muita esperteza saloia…e de escasso saber científico. Mas ainda que tenha obtido tão brilhante média apenas à custa do próprio saber, convenhamos que da matéria leccionada, apenas interiorizou metade, restando-nos perguntar se meio saber é algum saber sequer. E curioso constatarmos aqui que mesmo entre professores universitários, alguns acham que conseguir tal nota é saber o mínimo, logo o suficiente ; eu é que teimosamente procuro que os meus alunos saibam o máximo, ingloriamente remando contra a tsunâmica maré.

Deste modo podemos admitir que um futuro professor termine o seu curso com média de dez valores ou à volta disso, sendo então admitido a estágio numa escola oficial. Embora permaneça ligado à sua universidade, onde terá de apresentar trabalhos de natureza didáctica e/ou científica, tem agora mais um avaliador : normalmente (mas nem sempre…) um professor algo mais velho e experiente, o orientador, que vai orientar o candidato segundo as suas próprias ideias do ensino e experiência docente.

Orientadores de estágio há muitos, e de diversos tipos. Não direi muito acerca destes, até porque já o fui também (que não fui eu na vida ?). Os mais velhotes, e nesse grupo me incluo, pasmam com a ignorância científica, a infantilidade espantosa, os caracteres deficientemente formados da massa que às mãos lhes chega – mas sabem que se reprovarem aquelas pobres criaturinhas que nem sequer têm toda a culpa do seu estado lastimoso, lhes farão perder um ano de vida profissionalmente activa…e mais certo é que lhes apliquem pelo menos a nota dez do que os convidem, por exemplo, a desistir de um estágio (quando não de uma profissão) para o qual não estão preparados, nem em termos científicos nem humanos. Os mais jovens, saídos da mesma fornada dos estagiários, decerto nem dão por nada e podemos prever que sejam mais pródigos nas notas que propõem, surgindo algumas bem superiores àquela metade de vinte.

No ano seguinte, um jovem nas condições que descrevi concorrerá aos quadros de uma escola, como professor profissionalizado.

Pouco importa que fale como um carroceiro, que moralmente seja duvidoso, que não saiba pegar em faca nem em garfo, que masque constantemente pastilhas elásticas, que mesmo na sua especialidade cometa erros capazes de fazer corar um mestre de obras - no nosso país é um professor encartado, a quem será confiada uma centena de alunos – que não será de admirar imitem, desde já e mais tarde, as posturas do seu mestre.

E antes que me esfolem viva (mas devo referir que não tenho excessivo amor à pele) vou repetindo que há, obviamente! excepções a tudo isto. Conheço algumas. Poucas. Pouquíssimas.

terça-feira, 28 de abril de 2009

Ordens de grandeza

A minha aula de hoje, com os tais alunos de que já bastante falei (noutro local), correu excepcionalmente bem.

Não houve grande avanço científico, digamos, dado que apenas falámos nas moléculas de água e de amoníaco!

Veio a propósito o sr. Larry Ellison e a sua casinha de 200 milhões de dólares (Senhora! Ele para ir ao quarto de banho tem de ir de automóvel! o que até deve ser mais ou menos verdade e pôs toda a gente a rir, eu incluída! Para que é uma casa tão grande?) Mandei-os pesquisar sobre esse senhor, e espero que eles cheguem à conclusão a que eu própria cheguei: a quarta fortuna do mundo foi construída à custa de conhecimentos de informática, adquiridos num curso superior que nem sequer concluiu.

A seguir veio, a propósito de coisas muito grandes e extensas, a enorme fazenda Madal, onde trabalha o meu genro, e que é quase tão grande como duas ilhas de São Miguel! Oh senhora, isso pode lá ser!! Bem, então vamos aos números:

Área da Madal: 150000 hectares
Área de São Miguel: 78400 hectares

Contra factos, não houve argumentos! E já agora...para percebermos ainda melhor, quantos alqueires de terra tem a Madal? Aqui, houve divergências, alguns alunos não acreditando no valor que propus: 1393 metros quadrados por alqueire. Mandei-os perguntar, no exterior, a alguns trabalhadores da Câmara que tratavam de embelezar, enxada em punho, o jardim da escola. Eles devem saber!

Sabiam, efectivamente. Confirmaram os meus valores, o que me fez - pareceu-me - subir altamente na cotação dos meus alunos, como quem diz esta anda com os pés na terra...não vive só no mundo abstracto e ininteligível de electrões e números quânticos...

Continuámos a interessante conversa:

Um alqueire: 200 varas quadradas. A vara era um bordão com duas ponteiras de metal, bastante parecida decerto com a que os romeiros de S. Miguel ainda usam. Nos Açores pode medir doze palmos (ou seja, 2,64 metros) chamando-se vara grande, ou 2,20 m, que correspondem a dez palmos e é a vara pequena. Nos grupos central, ocidental e parte do concelho da Ribeira Grande na ilha de S. Miguel, usa-se a vara pequena, o que faz com que as duzentas varas quadradas (e o alqueire de vara pequena) correspondam a 968 metros quadrados. O alqueire de vara grande, em uso no resto da ilha de S. Miguel, já se disse: 1393 metros quadrados.

Os senhores da câmara disseram ainda outra coisa: que um moio são sessenta alqueires. Lembrei-me logo que meu avô "bigodes de foca" (o pai de minha mãe) muito se referia a um local a que chamava o mei'moio (meio moio, 30 alqueires pois!)

Mas voltando à fazenda Madal, assim, tem qualquer coisinha como um milhão de alqueires de terra...de vara grande! (Safa!! não me terei enganado nas contas??)

Chegando a casa, aprendi mais uma coisa: que na ilha de Santa Maria ainda se usa uma vara intermédia, sendo o alqueire mariense de 1232 metros quadrados.

Hoje não houve brincadeiras mais ou menos infantis, não houve distracção, não houve tolices nem ralhetes. Falei baixinho toda a aula e não tive tosse nem tonturas - o que muitas vezes me sucede nas aulas com aquela turma. Saí toda contente...e eles também.

Por que terá sido?

sábado, 25 de abril de 2009

Vale a pena...


...ler "Como eu atravessei a África", deste senhor com tão bonitos bigodes: Alexandre de Serpa Pinto.

Escreve bem, à moda dos finais do séc XIX, linguagem da qual eu ainda apanhei uns importantes restos. Por vezes, mesmo, utiliza uma ironia suave, que muito me agrada...

Vai-se lendo e concluindo muitas coisas...uma delas é que nem tudo o que se passou é culpa do Salazar, instaladas certas situações já muito antes do nascimento deste. Claro está que podemos perguntar-nos porque terá, enquanto estadista, feito tão pouco, e mesmo quanto ao que fez porque o fez de forma tão serôdia, para as solucionar. Também é certo que estamos a raciocinar no "depois"...

Portugal usou a sua grande colónia (Angola) mais ou menos como eu uso o aterro sanitário de São Pedro, bonito nome ultimamente atribuído à lixeira municipal. Vago comércio (por vezes de escravos), vaga (ou mesmo nula) cristianização, despejo de indesejáveis (os degredados). Note-se que estes não eram "criminosos" meramente políticos, havendo entre eles ciganos, que apenas portariam a "culpa" de o ser, alguns perseguidos pela Inquisição (geralmente por acusações de prática de feitiçaria), e muitos (que terão constituído a maioria) de delito comum, que é como quem diz ladrões e assassinos.

Mas que ricos exemplos, e que dignos representantes da civilização ocidental.

Para quem se quiser ilustrar sobre os ditos degredados há, entre outras referências:

http://bdtd.bce.unb.br/tedesimplificado/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1060

Enfim...

sexta-feira, 24 de abril de 2009

Pândora ou Pandora?

Daí não há-de advir grande mal à humanidade, mas deverá ser Pandora, pois se juntarmos algumas letras gregas, a saber um pi, um alfa, um niu, um delta, um omega com acento, um ró e outro alfa - símbolos que mesmo os estudantes de ciências exactas conhecem bem - e que parece ser o nome original da dita, creio bem que dará Pandora (acentuada no o) e não Pândora (acentuada no a).

E a isto se resume o pouquíssimo grego que sei, e mesmo este só à custa de ter ouvido, muitas vezes: por que perguntas isso? Olha, está aqui o dicionário com a origem das palavras. Mas eu não sei ler isto, é grego! Está aqui a gramática de grego, e logo no princípio o alfabeto, podes ver como é.

É sabido que o ensino oficial não proporciona, pelos menos como hábito sistemático, este tipo de aprendizagem. Talvez por que não é esse o seu objectivo; talvez por que daria mais trabalho a uns e a outros.

Daria mais trabalho, mas só inicialmente, por que quem assim foi treinado fica com ferramentas para toda a vida - como quem diz que mais vale ensinar a pescar do que oferecer peixinhos.

O facto é que, a partir do momento em que me foram apresentados dicionários e gramáticas, bem como outras preciosidades em letra de forma, raramente ouvi da boca de meu pai respostas directas. Ao ser questionado por mim (e muitas vezes o era, coitado!) geralmente respondia-me como atrás, pondo à minha disposição os instrumentos de pesquisa daqueles tempos, em que já se sabe que não havia internet. No final, perguntava-me ele a que conclusão tinha chegado, premiando a minha pequena vitória com um sorriso.

Vem a propósito dizer que hoje que temos acesso à internet, nem sempre nela se encontram as respostas pretendidas; nela viajei à procura da decisão entre Pândora e Pandora, mas nada encontrei a respeito e voltei aos antigos métodos. É sempre bom dispor de vários sachos, não vá um partir-se.

Mas voltando à Pandora, vinha a ser como nos lembraremos uma jovem que abriu uma caixa que não devia, um pouco à maneira de Eva que comeu uma maçã que também não devia. Da caixa sairam então todos os males que daí para frente passaram a afligir a humanidade, como sendo a velhice, o trabalho, a doença, a loucura, a mentira e a paixão. No fundo da caixa, ficou a esperança, segundo algumas interpretações do mito; noutras, o desconhecimento da hora da nossa própria morte, o único verdadeiro bem. Com os males libertados da caixa, teve fim a idade de ouro da humanidade - o que corresponderá à expulsão do paraíso, numa outra história que conhecemos melhor, ou talvez mais bem, que a decisão entre os comparativos há-de ficar para outra.

Os autores gregos listaram, em verso, os males que afligem a humanidade - muito bem. Eu vou resumi-los num só, e quem me dera ser poeta como eles:

Dizia meu pai ao subir o monte
dos nossos passeios - tão longe a infância -
que havia do mal somente uma fonte
chamada ignorância...

E para acabar, o pormenor cómico: como professora, uso muitas vezes a estratégia na qual fui afinal treinada, de mandar os alunos pesquisar por si mesmos, quando eles me perguntam isto ou aquilo. Eis senão quando corre pela sala dos professores a seguinte observação: a profª Fulana também não deve ser assim tão competente, pois não sabe responder às perguntas dos alunos e manda-os pesquisar.

Ai, Jasus qu'ride!

sábado, 18 de abril de 2009

O navio



Tipo ... Navio misto de 2 hélices
Construtor ... Cantiere Navale Trestino
Local construção ... Monfalcone - Itália
Ano de construção ... 1929
Ano de abate ... 1973
Registo ... Capitania do porto de Lisboa, em 21 de Abril de 1930, com o número 420 F
Sinal de código ... C S B U
Comprimento fora a fora ... 112,82 m
Boca máxima ... 15,30 m
Calado à proa ... 6,69 m
Calado à popa ... 6,99 m
Arqueação bruta ... 4.559,55 Toneladas
Arqueação Líquida ... 2.694,45 Toneladas
Capacidade ... 4.292 m3
Porte bruto ... 4.724 Toneladas
Aparelho propulsor ... Duas máquinas de triplice expansão, de 3 cilindros cada, construídas em 1929 por John G. Kincaid & Ca Lda. em Greenock - Escócia. Quatro caldeiras, com 3 fornalhas cada, para a pressão de 14,7 K/cm2.
Potência ... 4.430 cavalos
Velocidade máxima ... 14,0 nós
Velocidade normal ... 12,0 nós
Passageiros ... Alojamentos para 10 em classe de luxo, 68 em primeira classe, 78 em segunda, 98 em terceira e 100 em cobertas, no total de 354 passageiros.
Tripulantes ... 98
Armador ... Empresa Insulana de Navegação - Lisboa


Dos amores todos foi ele o primeiro
chegadas as férias que grande alegria
comprar a passagem tão pouco dinheiro
custava o mar alto e a ventania

Lá vinha o navio como ele avançava
que belo corcel de sagas estranhas
saía da bruma sereno enfiava
a proa nas vagas nas vagas tamanhas

E eu espreitava boneca nos braços
gritava bem alto aí vem chegou
e o peito insuflava com o ar dos espaços
espaços sem fim que ele me ensinou

E quando a seu bordo o povo abrigado
ficava pra trás sem medo esquecida
vinha um marinheiro dizia zangado
já lá para baixo menina atrevida

Em baixo o lugar do homem segundo
pra baixo seguia a gente mesquinha
são coisas da vida mandar para o fundo
a dona do mar a deusa marinha

A tudo indiferente a proa troçava
dos perigos sem nome do grande canal
e eu na vigia a cabeça enfiava
os lábios lambia gostava de sal

Assim fui crescendo tão grande fiquei
em outros navios andei embarcada
os sonhos da infância na mala levei
mas ao regressar não trazia nada

Carvalh'Araújo teu nome inda sei
por onde é que andas que é feito de ti
eu fui pra tão longe e quando voltei
tu já cá não estavas nunca mais te vi

Os velhos desejos de um dia agarrar
na roda do leme contigo fugir
como dois amantes que vão para o mar
em busca de ilhas para descobrir

também me deixaram tão longe os perdi

E as ilhas do longe vão ficar à espera
à espera de um outro descobridor
que eu já não sou aquela que era
eu já não consigo amar um vapor



Na verdade, acho que até ainda consigo, um bocadinho...
A todos os que o amaram como eu!

Valores

Ao fazer a pesquisa escrevendo a palavra "valores", o google dá-nos em primeiro lugar "ouro".

Se por um lado é verdade que não se deve (por inútil) falar de filosofia a quem tem a barriga vazia e não sabe onde encontrar comida nem hoje nem amanhã, por outro é certo que existem outros valores além dos monetários ou financeiros...

A observação das pequenas coisas que se passam no quotidiano pode dar-nos uma chave para a crise do mundo actual, crise que abrange - atrevo-me a dizê-lo - países tanto desenvolvidos como sub desenvolvidos.

Alguns exemplos, retirados do meu próprio dia a dia:

Por uma professora da escola onde trabalho foi feita uma campanha de recolha de roupas usadas para enviar creio que para S. Tomé. As roupas foram examinadas e separadas, com a intenção do transporte. A maior parte das peças era completamente inusável, fosse por quem fosse, e a responsável pela recolha tudo mandou para o lixo. Deste modo, quem deu aquelas roupas, nada deu, fez sim limpeza ao lixo que tinha em casa. Que se entende por dar?

Fraudes várias, copiar nos testes, conduzir de qualquer maneira (desde que a polícia não esteja por perto), deitar lixo para as ribeiras (se não for visto por ninguém, não faz mal), utilizar atestados médicos sem se estar doente - que é isto senão falta de valores? As pessoas deveriam já ter interiorizado que as coisas são o que são, e se devem fazer ou não, independentemente do facto de estar alguém a ver ou não, de alguém descobrir ou não.

Recusar-se a fazer seja o que for que não tenha imediata compensação monetária ou outra, ou que não envolva castigo pela sua recusa (lamentando eu num grupo de profs. que o desfile de Carnaval da escola se realizasse numa sexta feira, com prejuízo de um dia de aulas, e sugerindo que passasse a ser no sábado gordo, de imediato se levantou enorme grita: se fosse no sábado, eu não poria cá os pés!) Porquê? Não ganha ao sábado? E se apanhasse falta, viria? Que remédio! foi a resposta.

Ao entrar nas salas de aula, por vezes encontro as ditas completamente desarrumadas e até sujas (se teve lugar um teste na aula anterior, com desvio e arrastamento de mesas e cadeiras...). Quando me proponho e aos alunos a arrumar tudo, são invariáveis as respostas: Não nos compete! Quem desarrumou que arrume! As funcionárias que arrumem! E logo se sentam refastelados, enquanto eu vou arrumando tudo sozinha. Um ou outro, envergonhado, levanta-se e vem ajudar-me, mas não todos!

Invariavelmente, ao entrar às sextas feiras na sala A1, encontro o quadro competamente escrito, o apagador saturado de pó de giz, e o prof. que me antecede ainda em aula, durante o intervalo! os alunos pedem-me que lhes permita um intervalo...à custa de uns bons dez minutos da minha própria aula! Estão eles cá fora a engolir uma sandes em enormes dentadas, e estou eu a limpar tudo afanosamente, clamando no íntimo contra a falta de valores que é que causa "isto"!

Tais corrimaças e desmandos fazem os alunos - sobretudo os mais pequenos - pelos corredores da escola, que atravesso sempre a zona que conduz aos laboratórios com os livros e os braços à frente do estômago, a protegê-lo, pois não é improvável que um deles me atinja de frente como um míssil que não vê nem ouve. Desde que fui operada, então, redobrei as precauções! Porque o fazem? Serão animais irracionais? Não são, e até os animais irracionais aprendem...nunca ninguém lhes disse que não deveriam fazê-lo, e o porquê de o não fazerem...as minhas repreensões comedidas perdem-se entre os urros histéricos das funcionárias!

Raro é o aluno nesta escola, isto admitindo que exista algum, que segure as portas para os outros passarem, abrindo-as de encontrão, o vai vém da porta permitindo a passagem de uns quantos até que a mesma bata com estrondo. Como resultado adicional, para além da exibição da maior indiferença pelos outros, nenhuma das portas da minha escola fecha convenientemente, algumas estando mesmo amarradas com cordas. Note-se que se trata de edifícios novos e de portas novas, que terão uns cinco ou seis anos. Claro está que também, junto das portas, tenho o maior cuidado com a cara que Deus me deu! Então, menino, empurraste a Professora Teresa para lhe passar à frente, não deverias ser tu, antes, a segurar a porta para a senhora passar? Que a segure ela que não é aleijada! Nem é melhor do que eu!

Não é isto falta de valores? Não é isto, até, um falso entendimento da democracia (a professora não é melhor do que eu)? Não é isto o "só faço o que me dá proveito", "só não faço o que me dá castigo"? Efectivamente, na minha escola, ninguém é castigado por destruir portas ou seja o que for...e que, mesmo assim, devamos cuidar da res publica ultrapassa, decerto, o entendimento dos utentes...

Dou explicações a alguns alunos, de forma não inteiramente legal, dado que seria necessário pedir autorização à Direcção Regional para o efeito, considerado que é trabalho em acumulação. Na secretaria da minha escola dizem-me que não valerá a pena pedir autorização, porque mesmo não a dariam (já tenho reduções no horário por tempo de serviço) e além do mais a senhora não passa recibo, não é? Passo pois (e creio ser a única que passa). Dos olhares dos funcionários recebo a sensação de estar coberta de ridículo, que é como quem diz que me parece ter apanhado com um balde de excremento em cima.

Mais ninguém passa recibo de explicações, e de outras coisas, porque afinal o estado é um ladrão, explora-nos até à última e usa mal o nosso dinheirinho! Mas...se assim é...e talvez seja...o correcto a fazer não seria pôr no olho da rua esses governantes incompetentes e corruptos? E já agora, admitindo que muitos dos políticos são uns troca tintas, que só querem é o seu, que tal dar o corpo ao manifesto e ir para o lugar desses, procedendo então de diverso modo?

Obviamente, daria muito trabalho, traria muitos dissabores, criticar por detrás é sempre mais fácil - e quando chegar ao momento da votação, votar na continuidade, afinal. Nem sequer é mau de todo que os governantes (seja a que nível for) tenham os seus podres, caso em que poderemos estar mais ou menos confiantes em que não perseguirão os nossos com afinco! "Se a minha cabeça rolar, muitas rolarão!"

Nestes "engana se podes", "esconde-te que não vejam", "trata mas é de não seres apanhado" - se vão passando os tempos e enlameando as sociedades.

Estou convicta de que a crise de valores é a crise de Deus. Na realidade...se Deus não existe...ou, pelo menos (afinal, nunca se sabe...) existirá, mas está para lá quieto, aparentemente esgotado o stock de raios e coriscos - para que hei-de eu proceder "bem"? Desde que não seja apanhado pela polícia...nem caia na alçada dos tribunais...Um ou outro espírito digno, mesmo duvidando (talvez!) da existência do ser superior tentará proceder correctamente, que seja ao menos pela lei natural.

Não hão-de ser muitos. Não conheço nenhum, mas se o conhecesse olhá-lo-ia com admiração: é mais fácil proceder bem com Deus do que sem ele.

sexta-feira, 17 de abril de 2009

Eu, Diogo Cão, navegador...


Daniel (na cova dos leões) além de ser uma linda história bíblica é também o título dumas linhas que já noutro local coloquei, e em que tentei falar da minha mágoa por aqueles que tinham ficado na terra há tantos anos castigada por guerras, e que assim continuaria por muitos! Oh Daniel, a gente nunca mais se há-de ver neste mundo! É, D. Maria da Glória, mas os senhores ao menos têm para onde ir - e de facto tínhamos, para o longínquo e fantasmagórico Puto, onde semanas mais tarde acabaríamos por chegar - com a roupa do corpo, mas vivos - e choravam ambos abraçados um ao outro, a pequenina professora já idosa e o alto rapaz africano, em momento de que jamais me poderei esquecer...todos os presentes choravam aliás.

Daniel não tinha como fugir da cova dos leões.

Se colocarmos o começo da guerra nas colónias em 1961 (annus horribilis) e o fim dos confrontos militares, pelo menos em Angola, em 2002, concluiremos que a maior parte dos angolanos vivos pouco mais conhece da vida do que a sua face mais sombria e sórdida, envolto que cresceu e viveu em pelejas sangrentas, humilhações várias e a decorrente fome omnipresente.

Terá sido esse o caso de Daniel, que hoje andará por volta dos 60 e poucos anos, mais coisa, menos coisa. Antes da guerra, a humilhação; durante a guerra, a guerra; depois da guerra, as minas terrestres e a fome.

Daniel e minha mãe foram os dois primeiros professores da escola do Sachole. Ao chegar ao Bailundo, vinda de Carmona, minha mãe concorrera aos quadros do distrito do Huambo; todas as vagas preenchidas, foi aberta aquela escola não duvido que especificamente para a senhora tão competente e bem falante, D. Maria da Glória do Puto! Como iniciou logo com as quatro classes, casa bem cheia de meninos e meninas (embora não existisse quarto de banho...) foi também colocado um professor, que vinha a ser o Daniel. De bom feitio, delicado e amável, de imediato minha mãe simpatizou com ele e o tomou sob a sua protecção.

O Daniel ia por vezes a nossa casa trabalhar com minha mãe. Perfeccionista, esta - talvez tendo percebido alguma deficiência nos conhecimentos do moço, apesar da boa vontade - tomou a peito preparar as lições com ele, enquanto iam conversando sobre isto e mais aquilo. Ouvi algumas dessas conversas; curiosamente, minha mãe nunca dava a impressão de estar a ensinar nada, parecendo sempre a conversa ser a de dois bons e velhos amigos. Eu bem a percebia, é claro.

A nossa sala, na casa onde morávamos no Bailundo, exercia conjuntamente as funções de sala, com um pequeno divã, escritório, com uma secretária onde geralmente trabalhava meu pai, uma estante, e mais ao fundo a mesa de jantar. Um aparador, se bem me lembro, e pouco mais teria. Nas paredes alguns quadros, invariavelmente de minha autoria.

Em tempos em que não existia televisão pelo menos por ali (em Lisboa já havia há alguns anos) os serões eram passados a ler, a estudar e a conversar, eu por vezes a fazer as minhas laboriosas pinturas - ficou notável uma colecção de retratos que fiz para ilustrar a Mensagem do Fernando Pessoa, todos pintados de modo algo incongruente ao som do Adriano Correia de Oliveira e mais do Zeca Afonso - entre família, ou com amigos. O padre Menezes era visita frequente, até que passou a ser diária e comensal, pois às tantas, todo contente, jantava connosco por sistema. Por vezes vinham outras pessoas, colegas da Escola, amigos dos meus pais.

Num certo dia estávamos só meus pais e eu, mais o Daniel. O Padre Menezes já se fora embora, acabado o jantar e os dois dedos de conversa (gostava muito de conversar com meu pai, e ria-se muito das tolices que eu dizia, dizendo tchá, tchá, mudemos para outro assunto!). Meu pai sentou-se à secretária na sua posição típica, mão a segurar a cabeça, olhos postos no livro de filosofia, eu sentei-me no divã a ler qualquer coisa e minha mãe na mesa de jantar, com o Daniel. A lição que estavam a preparar era de História de Portugal, que começa como se sabe pela descrição da península Ibérica e depressa passa para os lusitanos, antepassados dos portugueses, tribo de celtiberos que muito deu que fazer, ao que parece, aos conquistadores romanos.

Com os olhos ia percorrendo as páginas do meu livro, mas com os ouvidos escutava minha mãe a dissertar sobre os lusitanos, sempre a parecer que contava uma história de encantar. O Daniel ouvia atento, com os olhos muito abertos a rebolar por sobre as figuras do manual enquanto minha mãe ia dizendo: eles vestiam-se com peles de animais, já viu, Daniel, isto deve ser uma pele de búfalo (de auroque seria, mas a diferença não é grande) e alimentavam-se das raízes e frutos que collhiam pelo mato, olhe, isto não parece ser uma cenoura? Caçavam também com estas lanças...e setas, já reparou? eu estava de costas, mas imaginava a mão fina de minha mãe a percorrer as imagens coloridas. E às tantas o Daniel disse, como quem regressa de uma zona muito escondida da mente: ó D. Maria da Glória, mas então...os portugueses já foram selvagens, assim como nós?

Fez-se um silêncio pesado. Nem minha mãe encontrou que responder - pelo menos a princípio. O Daniel não o dissera com mágoa, mas tão somente com surpresa, pois surpresa revelava o tom da sua voz. Meu pai nem terá ouvido, imerso em mais alguma prova irrefutável da existência de Deus. As lágrimas vieram-me aos olhos.

Daniel teria uns vinte e poucos anos, nessa altura. Após quatro anos de instrução primária, cinco de liceu e dois de Magistério Primário, que teria ouvido dizer, em todos esses anos de estudo e escolaridade, o rapaz ovimbundo? Que os portugueses eram uma espécie de semideuses, fortes e invencíveis, sabedores omniscientes, potência europeia descobridora da maior parte do mundo conhecido, portadores da religião do próprio Deus dos brancos, tudo conhecendo e tudo podendo, enquanto os nativos como ele das terras viciosas de África não passavam de meros selvagens, que se não fosse a mão benevolente dos europeus do poderosíssimo Puto ainda se pendurariam nas copas das árvores como a macacaria, cheirando a catinga, rosnando e grunhindo como animais?

Preto matumbo!

Minha mãe, entretanto, recompusera-se e fora dizendo palavras de circunstância. Eu tentei disfarçar o melhor que pude, colocando-me ainda mais de costas para os dois. Nem de propósito, na parede à minha frente encontrava-se o retrato de Diogo Cão, legendado por mim com as belas palavras do poeta:

A alma é divina e a obra é imperfeita
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que da obra ousada é minha a parte feita
O por fazer é só com Deus

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês
Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português!


Esse dia acabou, como sucede a todos. Daniel foi para casa, decerto ainda ruminando na sua mais recente decoberta. Ora quem havia de dizer! Os portugueses, afinal, já tinham sido também selvagens...a certa altura! Meus pais comentaram entre si o sucedido, desgostosos. No dia seguinte o retrato de Diogo Cão fora arrancado da parede. E nunca mais voltou para lá.


Notas:

Puto - Portugal, assim lhe chamavam em Angola. Muene Puto: o rei de Portugal.
Matumbo - não sei se tem "tradução" exacta; o sentido é mais ou menos o de estúpido, bronco.

Que fique claro que nada tenho contra Diogo Cão, apesar de ter arrancado o seu retrato da parede. Coitado! Mesmo que culpa tem, seja do que for?

terça-feira, 14 de abril de 2009

Domine, non sum dignus...

José era um menino forte, inteligente e bonito. De boa estrutura orgânica, escapou com vida, enquantos os seus cinco irmãos mais velhos, como ele todos Josés, tinham descido a rua empedrada nos seus caixõezinhos de cedro, de branco alvaiados. Nos primeiros anos do século, José frequentou a escola primária, deliciando a senhora mestra com as suas capacidades e facilidade na aprendizagem – pois este menino deveria continuar os estudos, Sr. António ! Mas o sr. António (aliás, ti’Antonho do Alagoeiro) não podia prescindir dos serviços do filho varão nos duros amanhos das terras e do gado, e já se vê que José se ficou pela freguesia, agarrado ao cabo da enxada e à rabiça do arado, quando não à temível aguilhada, conduzindo os bois.
De menino, José transformou-se rapidamente em rapaz e homem feito : corpo alto e atlético, mãos nodosas e grandes como maços, belo rosto e olhos sombrios, um perfeito e eficiente lavrador que decerto teria casado com a moça mais prendada, formosa e rica do lugar, se os seus planos esses fossem. Mas não eram. Aos vinte e um anos, viajou para a ilha Terceira para a prestação do serviço militar, por lá acabou os estudos primários e ingressou no Seminário. Ti’Antonho e sua mulher alegraram-se à perspectiva de um filho padre, bênção familiar a colmatar a falta que os fortes braços lhes fariam nos duros trabalhos do costume. E um belo dia ele voltou, revestido da glória de feitos intelectuais – tão inteligente, tão bom aluno, fora convidado a leccionar no próprio Seminário ! - para dizer a missa nova na velha igreja de São José ; cheia à cunha, a freguesia em peso lhe foi beijar a mão.
Seria colocado na Vila, a coadjuvar dois padres mais idosos.
Ora José, apesar de padre, continuava a ser o que sempre fora : forte, inteligente e bonito. A cultura adquirida nos livros e no convívio não lhe fizera perder o substrato do lavrador ; José apesar de padre ia lavrar com os lavradores, caiar a Igreja com os caiadores, à pesca com os pescadores e até derrubar, em amigáveis contendas, os homens que com ele mediam forças na praça. Até se disse que foi o único a conseguir mover o sino grande, em competição alargada a toda a vila, no adro da igreja. É possível. Naqueles recatados tempos, homens e mulheres iam ao banho separadamente, mas as moças da Vila ao que parece iam espreitar o senhor padre José, de bonito corpo, cortando as vagas do porto em grandes braçadas.
José cantava e tocava órgão na igreja, acrescentando mais um ponto aos seus outros atributos com a bela voz de tenor, educada nos solfejos e nas harmonias, enquanto os homens ouviam agradados e as beatas e moças enxugavam as lágrimas do sentimento.
Tantos sucessos e a adoração do povo pelo padre que era parecido com o povo e não uma florzinha de estufa estiolada e tremelicante devem ter feito a sua mossa nos colegas, e pensa-se que a calúnia tenha saído precisamente dos dois padres que José coadjuvava. Havia uma donzela no lugar que se demorava muito tempo, demasiado tempo, na confissão ; e é feita à diocese a queixa de crime hediondo, de que um jovem sacerdote dava a absolvição à própria amante!
José é castigado, se não pelo pecado – que jamais se provou – pelo menos por ter sido veículo, mesmo que inocente, de escândalo. É expulso da paróquia, e transferido para uma outra, lugar humílimo, ainda mais rural se possível e em todos os sentidos mais pobre. Nela serviu vários anos, dizendo os mesmos sermões de maravilha, pescando com os pescadores, caiando com os caiadores e lavrando com os lavradores. As mãos cada vez mais nodosas, o olhar cada vez mais sombrio. Voltou a mudar, já a seu pedido, de paróquia ; mudou de novo, de novo, de novo. Chegou a dizer-se que além de muito sabedor seria santo, pois nas visitas a paroquianos doentes e obviamente pobres apareciam milagrosamente notas de banco debaixo dos travesseiros poídos – mas estou certa de que José é que as metia lá, quando ninguém estava a olhar.
Muito teria José gostado de continuar os seus estudos em Roma, meto-me eu a adivinhar, pertinho do papa (quase mais perto de Deus!), rodeado da fina flor cultural e artística da humanidade. Mas não. Outros foram mandados para Roma, José não. Certo é que lá foi uma vez, numa excursão baratinha, e foi tudo. Com o pouco que sobrava das deixas sob os travesseiros, foi comprando livros...e mais livros, que leu, estudou, sublinhos e anotou, enquanto a parkinsoniana avançava pela calada. E um dia morreu.
As voltas da vida fizeram com que os livros de José, aliás Padre José, viessem parar às minhas mãos. Vejo os sublinhados, leio as anotações; quase penetro no espírito do gigante. Mas, Senhor, eu não sou digna...

&/10/2008

Ainda sobre José

Hoje de manhã fui à oficina de mestre Vítor, para que este me cortasse os pés de uma caminha de ferro. Será esta que, depois de bem calçada com sapatinhos de feltro, irá para a casa da Roseira.

Fiquei à espera pois mestre Vítor disse-me que seria rápido, o que afinal não se verificou. Depois de destroçadas duas lâminas da rebarbadeira (parece-me que o "ferro" de antigamente era melhor que o de agora, como quase tudo) sugeriu-me que voltasse de tarde.

Já se vê que comecei logo a pensar que afinal a despesa seria maior do que eu pensara, mas agora já está. Aliás, tinha de ser feito.

Enquanto esperava, meti conversa com um sr. que lá estava também, a quem disse que a cama era de minha avó, que por esse motivo tinha muito empenho nela, etc. Vai daí o sr. (que é o sr. António Resendes, dono da Casa da Madrinha, mas eu a princípio não o sabia) começa a falar de meu tio padre, que conheceu muito bem, quando tinha à volta de oito anos! E mais tarde, já em Ponta Delgada, quando tinha dezassete anos!

Seu pai, aliás, era a pessoa que cuidava da quinta, no passal da vila do Nordeste.

Depois de falar das primas, da madrinha e da Telma, parte que se dispensaria, mas que vem sempre por acréscimo, começou a contar.

E contou...que, na Grota do Bravo, aquando de uma cheia, e para que as casas não fossem inundadas, perante os gritos da população, derrubou, com o pé (já me tinham contado esta história, e na altura dito que com as mãos - a diferença não é grande, provavelmente usou pés e mãos para o efeito) o muro de pedra, para que as águas se escoassem para o mar e não penetrassem nas casas, sujeitando-se a ser também arrastado para o mar, ali junto do farol do Arnel;

Que no dia de um incêndio nas Courelas, em casa de um lavrador forte - isto é, abastado - entrou na casa em chamas, para salvar o cereal, saindo para grande espanto dos populares com um saco de trigo debaixo de cada braço, até que todo o cereal ficou livre de perigo! Eu ontem tinha andado a reescrever a história do "Príncipe", seu pai...logo me vieram as lágrimas aos olhos, é claro;

Que fora transferido para São Pedro, em Ponta Delgada, porque a comunidade local - pescadores, sobretudo - andava muito desviada da Igreja. Padre José logo modificou o horário das missas, porque entendeu que os pescadores não podiam ir à dita porque muito antes dela iam para o mar. Passaram a ir mais algumas pessoas, mesmo assim poucas. Padre José passou a ir com eles à pesca, e ao que parece quando estava presente a mesma era milagrosa, e traziam sempre muito peixe (não é que eu não creia na possibilidade dos milagres, mas provavelmente ele conhecia, empiricamente embora, os melhores métodos e sítios de pesca...na ilha das Flores, todo o lavrador é ou era também pescador, seu pai tinha um barco). Cada vez era maior a afluência à Igreja;

A certa altura, falava para os pescadores e demais pessoas na rua, sobre uma pedra do velho porto da Calheta, uma das zonas mais antigas do povoamento de Ponta Delgada, que mãos - reputo-as criminosas - um dia entaiparam, para em seu lugar colocar um incaracterístico parque de estacionamento...De tal maneira acorria o pessoal que um dia, disse-me este senhor, a camioneta para o Nordeste não pôde passar, e teve de parar, saindo os seus ocupantes, tal era a multidão...Este senhor estava entre os que sairam, para ouvir também Padre José, a prègar sobre um pedaço de baixio!

A igreja de São Pedro passou a estar aberta, de modo aos pescadores poderem ir fazer as suas orações às duas da manhã!

Tudo isto me disse este senhor. Até custa a crer...não tenho, entretanto, nenhum motivo para o supor mentiroso...

Neste momento em que escrevo à pressa com medo de me esquecer de algum pormenor, olhei para o lado. Na parede está o retrato do mesmo Padre José de quem me falaram hoje. E volto a pensar: mas, senhor, eu não sou digna...

segunda-feira, 13 de abril de 2009

O Príncipe


António Luís descendia dos primeiros povoadores da ilha, no dizer do historiador homens corpulentos e nervudos, e de muitas forças, como bons e generosos africanos e portugueses antigos no falar e no trato, e nasceu em 1870, honrando até no físico as qualidades dos seus antepassados. Nunca foi à escola e, ainda rapazola, embarcou pelo alto para a América, a bordo de uma escuna. Uma vez lá, foi ter à Califórnia, onde ajudou a construir o relrôde e durante muitos anos pastoreou ovelhas pela serra Nevada, raifle na mão e olho atento aos caiotes, aos ladrões e aos índios. Acompanhado pelos fiéis cães, dava combate aos anteriores bem como aos temíveis grizzles e pumas, bicharada que a movimentação das ovelhas atraía. Trabalho sazonal, ia vendo os colegas gastarem nas cidades como Treiça, Tarloque e Los Angeles, as águias duramente ganhas, o regresso adiado à terra natal; propôs então ao patrão que o mantivesse no rancho por comida e dormida na época fraca, a só ia à cidade quando se tornava estritamente necessário, como na ocasião em que o foram buscar por causa de um fortalhaças de saloon que se gabava de partir a cara de todos os sanabaganas portugueses que encontrasse, e que, depois disso, terá sido forçado a mudar de opinião.
António Luís voltou à sua terra depois de quinze anos, com os mesmos sapatos do Lajedo que levara, mas bem cheio o belto das águias. E também tão português como fora, pois recusara-se a tirar os papeles que o transformariam em americano. Comprou algumas terras, e tratou de as valorizar, limpando e rebentando as rochas. Olhou à sua volta, e viu Maria Luísa…
Era bonita, prendada e sua prima. Falou com o tio, e este apesar de tudo foi mais honesto do que Labão para com Jacob: Maria Luísa? se queres casar, casa com Maria de Jesus, que é mais velha.
Não passou pela cabeça de nenhum dos três contestar a autoridade do tio e pai. E deste modo António casou com Maria de Jesus, que era também bonita e prendada. Tiveram vários meninos todos Josés, que foram percorrendo as ruas da freguesia nos seus pequenos caixões, até que um deles escapou, e depois deste mais sete filhos, entre rapazes e meninas. Maria Luísa emigrou também, só regressando depois de velha, madrinha de todos os sobrinhos, e já então por todos chamada Mar’quinhas d’Amer’ca.
À medida que passavam os anos, António foi-se tornando ti’ Antonho Luís do Alagoeiro, do lugar onde comprara a casa com as últimas águias da Califórnia. Trabalhava as terras, fazia as grades, as aivecas e os arados, caiava a casa e acendia o lume à forja, batia o ferro em brasa. À noite, conduzia as orações familiares: Padre nosso que estais nos céus…perdoai-nos as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores…dai-lhes Senhor o eterno descanso…entre os resplendores da luz perpétua. E depois, à luz da candeia, contava mais uma vez a quem estava e chegava as histórias da América: a tosquia na primavera depois do inverno nos planos, as façanhas do Big Frank, do Serpa da Ponta, do Cardoso, do Serpa da Via d’Água, do Francisco Margarida, do J’sé das facadas, do J’sé inglês…e as suas próprias. Os ouvintes arregalavam os olhos imaginando o grizzle, que de pé era tão alto como ti’ Antonho Luís, o puma com a pata presa na armadilha para caiotes, rugindo e tentando libertar-se, os índios montados nos rápidos cavalos a fugir dos cães do pastor e do raifle que lhe sabiam certeiro.
Ti’ Antonho Luís salvou muitos franceses no naufrágio da barca Bidart, nadando até ao navio encalhado no meio do temporal, com uma corda amarrada ao peito pela qual os náufragos se guiaram para terra. No dia do incêndio em casa do foguista, entrou nas chamas para retirar primeiro o homem, depois os barris de pólvora e enxofre. Também se atreveu ao pântano da Caldeira Branca, onde fora com outros homens da freguesia procurar o cadáver de ti’ Ana Tenenta, que se deitara a afogar, e isto para que os passantes nocturnos não tivessem medo do local; mas dizia-se na freguesia que nunca o tinham conseguido resgatar, e que o caixão que traziam só continha pedras.
Saía com o seu barco para o mar, pescava chernes e os afogados, quando não chegava a tempo de os pescar com vida; com bom tempo, em cima do ilhéu Monchique até dançava a chamarrita. Cercava as ovelhas no mato, nos dias de fio, e ia à Vila buscar remédios para os doentes nas ocasiões em que os ventos sopravam pela Rocha com tal violência que mais ninguém conseguiria passar, rastejando de borco sobre os musgos e as queirós.
Aos seus rapazes, antes de irem para a escola, ensinava apenas uma antiga e simples regra de bom viver: vossemecês nunca sejam os primeiros a começar uma briga; mas se eu souber que alguém vos bateu e não se defenderam, olhem que quem vos chega sou eu! Ao que parece, nunca foi necessário. Mulher, só teve aquela que recebera da mão do tio e do padre da freguesia.
Ti’ Antonho do Alagoeiro assistiu à missa nova do seu José, e à frente da família, antes de todo o povo, subiu até ao altar para beijar a mão do novo sacerdote, ministro de Deus e seu filho. O alto corpo curvado, o rosto triste e fechado, o penetrante olhar apagado, para estranheza das crianças ao ver as lágrimas dos comovidos conterrâneos à sua passagem. Um homem da freguesia fizera-lhe, pouco antes, o que os índios, os ladrões, os grizzles, os caiotes, os pumas, o relrôde, a serra Nevada, os valentões, os maus pagadores, os enrediadores, o mar, o fogo, o vento e a Rocha não tinham conseguido: obrigara-o a baixar a fronte de vergonha e mágoa, desonrando-lhe a filha, ingénua como uma criança. Maria viria a dar à luz um menino, e no intervalo de uma semana morreriam ambos, a mãe do parto e o filho de inanição. Ao ter conhecimento da desonra, que muito a medo lhe foi participada, pegara na aguilhada sem dizer uma palavra e começara a descer a rua a caminho da praça. Aos gritos da mulher, amigos e vizinhos tentaram demovê-lo de fazer justiça por suas mãos; mas apenas um argumento, lançado pelo regedor, o deteve: António, se matares aquele bandalho, nunca o teu filho poderá ser ordenado padre…
Então foi-se com os cães para o Rochão Grande, onde só os zimbreiros o poderiam ouvir reclamar a justiça de Deus. E o nevoeiro cobriu-lhe o rosto de água… ou talvez tenha chorado nessa ocasião.
Nunca mais dançou a chamarrita em nenhum lugar. Um dia, lavrava nas Queimadas quando se ouviram gritos na Rocha. Correu, saltando os muros de pedra, e um dos filhos viu-o de repente encolher-se e agarrar a barriga, depois endireitar-se e continuar a corrida até onde estava um grupo de conterrâneos a preparar-se para arrastar pelo carreiro abaixo um velho morto, caído no atalho estreito e íngreme. António pôs o corpo do velho às costas e com uma mão o segurou, com a outra a barriga, e assim o trouxe até à freguesia. A hérnia estrangulou e gangrenou. Delirava, no meio da febre altíssima; supondo-se metido numa fogueira, da qual já não conseguia sair por seus próprios meios, apostrofava a chorosa família: oh gente ingrata, que não me tirais deste lume! O filho mais velho deu-lhe a extrema-unção, e poucas horas depois a morte chegava.
Ti’ Antonho Luís do Alagoeiro era o pai do meu pai. Disseram-me que lhe chamavam o Príncipe.


Corruptelas: algumas são óbvias. Outras menos óbvias:

Relrôde: caminho de ferro (de rail road)
Raifle: espingarda (de rifle)
Caiote: espécie de pequeno lobo (de coyote)
Grizzle: urso pardo (de grizzly)
Treiça: Tracy
Tarloque: Turlock
Sanabagana: filho de…(de son of a gun)
Belto: cinto (de belt)
Planos: ? (do espanhol planícies?)

Uma história do Bailundo

Bailundo é uma cidade e município da província do Huambo, em Angola, localizada em pleno planalto central. Tem 7 065 km² e cerca de 56 mil habitantes. É limitado a Norte pelos municípios de Waku Kungo e Andulo, a Este pelos municípios de Mungo, Cunhinga e Chinguar, a Sul pelos municípios de Catchiungo, Tchicala Tcholoanga e Huambo, e a Oeste pelos municípios de Ekunha, Londuimbale e Cassongue. É constituído pelas comunas de Bailundo, Lunge, Luvemba, Bimbe e Hengue.

À região do Bailundo foi dado o nome do primeiro soberano, que vindo do norte da colónia, fundou e reinou durante muitos anos naquilo que foi o maior, mais poderoso e influente reino da colónia. Todos os outros reinos o olhavam com o maior respeito e admiração. A embala (casa grande), sede do Soma (monarca) situava-se na localidade hoje designada de Bailundo. O Reino do Bailundo foi sucessivamente atacado pelas tropas portuguesas durante séculos, tendo os mais conhecidos suseranos que ali reinaram resistido às confrontações militares até ao ano de 1896, altura em que o jovem capitão Justino Teixeira da Silva, transferido do Bié, onde fora também responsabilizado pela morte prematura do Capitão-mor Silva Porto, acabou por derrotar o Rei Numa II que acabara de suceder a Ekwikwi, e ali se instalou. A vila veio a ser denominada de Teixeira da Silva, tendo retomado o nome anterior de Bailundo após a independência nacional em 1975. Durante a guerra civil dos anos 90 esteve aqui instalado o quartel-general da UNITA.


A presente história teve lugar num edifício, de que não encontrei foto: o hospital do Bailundo, que seria mais um Centro de Saúde, mas a que chamávamos "Hospital".

Fui à consulta, no dito. Várias pessoas à espera, chegou uma branca, à frente de todos passou, o que já me deixou indisposta e na situação incómoda de não poder agradecer uma benesse que me contrariava sobremaneira. Nesses tempos eu era jovem (já o fui!) e não consegui dizer o que diria hoje: estes senhores e senhoras estão primeiro do que eu - e entrei para o consultório, com o dia estragado, é claro.

O médico era um indivíduo metropolitano dos seus quarenta e tal anos - escusado será dizer-se que eu, com vinte, o considerava um velho asqueroso - e ao ver entrar uma moça nova e bonitinha (ma non troppo...) tratou logo de abrir uma imensa cauda de pavão, conversando de mil e um assuntos excepto aquele que ali me levava, contando mil histórias em que, já se vê, desempenhava o papel de herói. Já contrariada de antemão, mais ainda com todo aquele aparato, lá ia dizendo monossílabos a propósito. E eis que ele me pede muita desculpa, mas que tinha de terminar e enviar uma carta urgentíssima! Baixei a cabeça em anuência. Terminou a carta, assinou com um grande rabisco floreado e chamou um cipaio (cipaio é outra coisa, mas ali exercia mais ou menos as funções de contínuo e mandarete) para a ir levar ao correio.

O cipaio entrou, era um preto velho, de cabeleira bastante branca (o que é raro nos pretos, mesmo idosos) e feição impassível. Qual não é o meu espanto quando o senhor doutor lhe manda botar a língua de fora, lhe passa o sobrescrito sobre a mesma e o fecha, entregando-lho a seguir! Ainda bem que os sobrescritos actuais, que até já nem são muito usados, não se prestam a ignomínia tamanha. Feita de fel e vinagre, nem bem acreditando nos meus próprios olhos, já queria era sair dali para fora o mais depressa possível. O doutor mostrou-se muito amável comigo, então minha menina, qual é o seu problema? Na verdade o meu problema era ter conhecido um idiota cara de asno, mas limitei-me a alegar dores de cabeça constantes e a safar-me dali o mais rápido que pude. Deus permita que eu nunca adoeça a sério nesta terra! E saí com uma receita de analgésicos que amarrotei e deitei no lixo mal me apanhei no exterior.

Cá fora o sol do Bailundo queimava impiedoso, mas não fui para casa. Tinha de digerir aquilo! E subi ao morro, de onde se avistava, parecia, o mundo todo! A estrada do Alto Hama, trinta e três quilómetros em linha recta, fechava as suas linhas no horizonte, atravessando as anharas férteis mas incultas; do outro lado, pela grande serra Lubanganga descia um colar de fogo: mais uma queimada, o ar pesado, irrespirável. A meio do morro do Bailundo, uma capelinha assinalava a passagem da palavra de Cristo por aquelas terras! E foi então que comecei a chorar...

Janela de guilhotina...



...começa hoje!