Na localidade onde eu então vivia, que eu tenha sabido não se ministravam cursos
de preparação para o parto, nem grande empenho me pareceu existir em libertar a
mulher da dura profecia bíblica, segundo a qual ela terá os seus filhos na dor
– o parto era considerado um momento difícil, para o qual se deveria estar
preparada mais com uma boa saúde do que de alguma outra maneira, nomeadamente
evitando comer muitos doces…mas que de um modo geral passado o mau bocado tudo
acabava bem, mais rasgão menos rasgão, que na época também a episiotomia não
era prática vulgar como depois veio a ser. Informei-me acerca de uma boa médica
obstetra que me seguisse regularmente, e tratei de “descobrir a pólvora” do
parto sem dor, mandando vir todos os
livros que os catálogos das editoras - catálogos físicos, que isto passa-se em
tempos em que não havia internet - apresentavam com esse ou semelhantes títulos:
o parto sem dor, preparação para o parto, parto sem medo, ser mãe hoje, vai
nascer o meu filho, etc. etc.
Na posse de uma boa meia dúzia de bons livros, tratei de os
ler de fio a pavio, e não só de os ler, como de praticar todos os exercícios
sugeridos, de relaxamento, de preparação dos músculos abdominais e pélvicos,
respiratórios, e mais uns alguns que fui acrescentando por minha conta. E como
convinha também preparar a psique, interiorizei do mesmo modo que sendo talvez
impossível neutralizar por completo a dor, a não ser obviamente com aplicação
de anestesia (que naqueles tempos me pareceu reservada, porém, aos casos de
cesariana) a expressão “parto sem medo” era a mais correcta, devendo substituir
a que já se usava muito, embora não se praticasse propriamente por ali, de
“parto sem dor.” Parecia perfeitamente aceitável e lógico que o pânico, a instalar-se,
rapidamente se transformaria no pior inimigo de uma parturiente que se
pretendia senhora da situação, e que esta não deveria permitir-se oferecer
resistência às contracções (expressão que todos aqueles sábios autores pareciam preferir à de “dores”) resistência
que muito dificultaria o normal decorrer
do trabalho de parto.
No dia anterior ao do nascimento , assim, com os primeiros
sinais do parto iminente, fui pondo em prática todos aqueles meus conhecimentos
teóricos: relaxar, não entrar em pânico, não oferecer resistência à dor,
respirar de modo controlado, e assim por diante. Tudo parecia estar a correr
bem. Mas ainda a procissão ia no adro, pressentia, e pelo sim pelo não fui jurando
a mim mesma que ainda que me parecesse estar a ser esquartejada por quatro
cavalos à boa moda dos suplícios antigos, da minha boca não sairia nem grito
nem gemido.
E de facto assim foi. A imagem dos cavalos, a puxarem cada um para seu lado, acabou por se
revelar apropriada. Com a chegada ao hospital, já no dia seguinte, e provavelmente
com aplicação da injecção de oxitocina pela impaciente parteira que não deixou
entrar o pai na sala de partos e resmungou o tempo todo (onde é que já se viu,
um pai assistir ao parto? Estes modernismos! Isto vai de mal a pior…) a verdade
é que as dores, e agora não passaria de um eufemismo chamar-lhes contracções,
ou se o eram - e eram! também eram fortemente dolorosas, apertaram de má maneira e
tive de recorrer a todo o meu auto domínio para não entrar em pânico, continuar
a respirar de forma controlada e a relaxar a musculatura, e a todo o meu
orgulho para não gritar nem gemer. A
minha médica, que eu pedi fosse chamada para grande escândalo da parteira (o
quê! A sua médica? Para quê? Então eu não sou enfermeira, e parteira, e
diplomada, e por aí fora) não se conseguia localizar.
O parto de uma primípara é normalmente mais difícil do que o
da multípara, por óbvias razões fisiológicas e pelo menos uma razão
psicológica: é que uma multípara já sabe como as coisas são. Na verdade eu só
queria a médica para ela me dizer que o parto era assim mesmo, afastando os
terríveis pensamentos que me cruzavam a mente:
Meu Deus! Vou morrer. Certamente tenho alguma doença que nunca foi
revelada mas que agora aparece. É impossível que seja normal este sofrimento
tão extremo. “Terás os teus filhos na dor”. Tá bem, que assim seja, mas isto não é dor, é um exagero. Não entrar
em pânico, respirar, relaxar. Onde andará a médica. E ela que me disse que
estava sempre disponível.
Havia alguma razão para a boa da parteira (mais tarde,
reflectindo em toda a sua acção, considerei-a boa profissional, de facto,
embora uma resmungona de primeira) não deixar entrar um pai na sala de partos,
pois além de não ser costume na altura, e ela não parecer muito do género de
abrir precedentes, a dita estava a ser usada ao mesmo tempo por várias
parturientes. Na cama ao lado da minha, separadas que estavam por um reposteiro
que mão apressada desviou, eu vi uma mulher africana, um tanto mais velha do
que eu, também a ter o seu filho. Por
alguma razão me pareceu que não seria o primeiro, talvez pela idade, andaria
pelos trinta e muitos, talvez mais. É possível que já soubesse que não se morre
num parto normal. Também não gritava nem gemia, e talvez tenha visto a angústia
a sair-me pelos olhos, no momento em que o seu olhar encontrou o meu; abriu os grossos lábios num sorriso e
estendeu-me a mão. As nossas camas não chegavam a estar separadas por um metro,
estendi a mão também e apertei a sua. Durante algum tempo sorrimos uma para a
outra e démo-nos as mãos. Os nossos filhos nasceram daí a alguns minutos…mas
antes disso alguém, talvez a impaciente enfermeira, já tinha fechado o
reposteiro.
Nunca soube sequer o nome dela. Ainda indaguei “quem era a senhora que tinha
estado ao meu lado na sala de partos no dia 24” mas ninguém soube ou pôde
elucidar-me. Vim-me embora feliz da vida (também é bíblico que depressa se
esquecem as dores do parto depois do nascimento da criança…) com a minha
menina, contente também por nem sequer ter
rasgado o períneo – o que logo atribuí à minha cuidada preparação, mas que em boa justiça também se deverá atribuir às mãos eficientes da parteira resmungona – e ufana por
ter cumprido a minha promessa de “nem gritar nem gemer”.
Quem me dera poder agradecer-lhe como ela merece. Mas como
não posso dedico-lhe Mulowa (mãe de gémeos), mais a formidável descrição que
nela faz Raul Indipwo do momento do parto. Porque ela foi a tribo que me ajudou
a ter uma filha, naquele dia já distante…a tribo onde é indiferente ser branco
ou ser preto, bastando ser gente, e precisar de compaixão.
24/Out./2015
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