quinta-feira, 1 de abril de 2010

Ensino doméstico


No final do meu segundo ano de liceu, agora chamado sexto ano, tive de prestar provas de exame no então Liceu Nacional de Ponta Delgada que funcionava onde ainda hoje funciona, embora com outro nome, e tinha o tamanho esmagador que ainda hoje tem, demais a mais aos olhos de uma pobre menina que nunca lá tinha posto os pés nem talvez visto edifício tão enorme, pois vinha não só da ilha de Santa Maria como do ensino doméstico. Ainda por cima para ir fazer um exame, coisa que ainda hoje é considerado por muitos como o verdadeiro papão das fábulas!

A parte científica não me afligia muito, estava bem preparada, estudara todos os aspectos possíveis e fizera todos os pontos (testes) da colecção Ouro, e mais os da colecção Editora e não sei que outros. O meu pai viajara comigo; estávamos ambos alojados em casa de amigos na Rua dos Capas, e Ponta Delgada, a cidade onde nasci e vivera até aos seis anos de idade, parecia-me, agora que tinha doze, o lugar mais bonito e interessante do mundo, muito especialmente a rua de Valverde, onde uma linda bicicleta de senhora (de marca BSA) exposta numa grande montra, se tornou desde que a vi objecto dos meus desejos mais secretos e impossíveis de realizar. Era muito cara, e não me atreveria jamais a expressar sequer vontade tão desproporcionada às finanças dos meus pais. Mas sonhar de noite e de dia com a dita, isso era perfeitamente possível…e a ninguém prejudicava.

Chegou o dia ou dias do exame – se bem me lembro, as provas eram repartidas por vários dias – e lá as fui fazendo, felizmente com o sucesso previsto. Até que chegou o momento da prova de Matemática…
Na sala, vários professores vigilantes; à semelhança dos outros dias, as provas sairam de um envelope castanho, foi-me entregue um exemplar, comecei a trabalhar. A vida era bela! Não era muito difícil, ou pelo menos não a considerei como tal. Afanosamente, tudo resolvi nas folhas de rascunho ( nas provas anteriores não fizera rascunhos) fiz uma revisão ao que escrevera, e comecei a passar a limpo na folha de prova, com a minha melhor letra, a resolução dos exercícios disposta esteticamente na folha! Às tantas uma campainha tocou, notei algum burburinho por parte de professores e examinandos, e pude constatar que os primeiros tinham começado a recolher as provas. Uma leve angústia me aporrinhou então a garganta: ainda não tinha passado tudo a limpo! Bem, não fazia mal, explicaria ao senhor professor que ainda não tinha acabado e pronto.

Assim fora eu tratada até então, devo dizer em abono da verdade. Desde que tivéssemos razão, ou assim o supuséssemos, bastava explicar as coisas e tudo se resolvia. Se não tivéssemos razão, também nos seria explicado o porquê e ponto final.

Continuei a cópia do rascunho para a folha de prova, até que uma figura enorme se postou na minha frente e me disse, no tom de voz mais áspero que se pode imaginar: Dá cá isso, menina, estendendo a mão para a folha. Como acto reflexo, agarrei-a, e disse com os meus mais bem educados modos: Senhor Professor, ainda não acabei de passar a limpo (assunto resolvido, agora o senhor professor esperaria mais cinco minutos). Mas não. O senhor professor respondeu-me acentuando se possível o tom agreste, agarrando por sua vez a folha e tentando levá-la consigo: sabes muito bem que têm de entregar a prova quando toca (não sabia assim tão bem, não) e a menina que eu era, largando a folha, e agora já com a voz a tremer, continuou (Ah David! Que terás sentido perante Golias?) senhor professor, ainda não acabei de passar, mas eu fiz tudo, eu sei fazer tudo…(e ia pensando: este homem não me há-de ver chorar…não posso chorar na frente dele…) não pode esperar um bocadinho? Então leve o rascunho, está aqui tudo feito, eu fiz tudo…leve o meu rascunho…está aqui…e estendia-lhe as folhas, para que as juntasse à outra que entretanto levantara. Indiferente à minha angústia, bem grande nesse momento, o senhor professor só dizia: olha para esta! Olha para esta! Sabes muito bem que não podes entregar as folhas de rascunho (não sabia, não senhor, como ainda hoje, quase cinquenta anos volvidos, eu própria professora já em pré reforma no alto dos meus 38 anos de serviço, embora já saiba que não se podem entregar as folhas de rascunho, ainda não sei por que é que não se podem entregar as ditas, pelo menos num aperto) e lá se foi com a minha prova incompleta, debaixo da risota dos outros meninos, que possivelmente também nunca tinham visto entregar as folhas de rascunho e acharam cómico que alguém procurasse fazê-lo, ou tão somente consideraram oportuno mostrar o seu apoio ao senhor professor.

Saí atrás dos outros, vermelha de vergonha e desgosto, com as lágrimas prestes a jorrar. Cá fora à espera dos examinandos, estavam muitas pessoas, mas só vi o meu pai, como este também só me deve ter visto a mim. E foi então que elas saltaram em catadupa: Paizinho! Paizinho! Aconteceu uma coisa horrível…vou ter uma nota muito baixa em Matemática…

Meu pai passou-me o braço pelas costas e saímos dali. No jardim do Padre Sena Freitas sentámo-nos ambos, ele viu os meus rascunhos e lá me tentou consolar, mais ou menos nestes termos: de facto é proibido entregar os rascunhos…de facto, os professores vigilantes deveriam tê-lo deixado bem claro, no começo da prova…os outros alunos, os do ensino regular, já deveriam sabê-lo, mas tu não, pois vens do ensino doméstico…Terei sentido uma dúvida no tom de voz de meu pai? Estaria preocupado porque eu andava no ensino doméstico, talvez devesse frequentar a escola oficial, talvez fosse melhor para mim? ainda entre baba e ranho, fui dizendo: mas olhe paizinho, que lá porque são do ensino regular, não sabem mais do que eu, estavam todos a olhar para mim porque eu estava a resolver o problema dos dois triângulos e eles não. Na verdade não era o ensino doméstico que tinha culpa daquilo…Na verdade tinha sido apenas um encontro com um mau educador, seguidor à letra da letra de uma lei sem muito ponderar no seu espírito, digno membro efectivo de um sistema com o qual era, afinal, muito parecido. Ao menos, poderia ter sido simpático, ao menos poderia ter-me explicado…

Mais tarde, encontraria muitos assim, e outros ainda piores.

Levantámo-nos do banco do jardim e eu assoei o nariz. Meu pai endireitou o chapéu, e disse-me, como quem encerra um assunto: deixa lá, filha. Afinal, tu sabias resolver os problemas, não é verdade? Era, era. E é isso que importa, não é verdade? Bem…é…ao fim e ao cabo…e se nós fôssemos agora à rua de Valverde, e entrássemos naquela loja que bem sabes?…
À voz de meu pai, todas as nuvens se desviaram da face do sol. Fomos os dois à rua de Valverde, e no regresso a BSA novinha em folha, verde e linda, vinha ao meu lado…para ser, durante muitos anos, a minha companheira constante. Quantas privações a sua compra terá representado para os meus pais, nunca o soube ao certo, mas posso imaginar.

Vivam meu pai, a matemática e as BSAs de senhora, verdes e lindas. E viva o ensino doméstico! Afinal, foi ele que fez de mim, além de outras coisas, uma das poucas professoras de entre as que conheço que não franze o nariz aos rascunhos dos alunos…embora tendo sempre o cuidado de os prevenir muito claramente: Meninos! olhem que no exame, não será assim…

À distância de quase cinquenta anos destes sucessos, não posso deixar de agradecer a meu Pai - a meus Pais - não só a importante oferta de uma linda bicicleta, como outra decerto ainda maior: a certeza de que em caso de conflito entre ser e parecer, é melhor ser, ainda que não pareça, do que contentar-se com parecer, mesmo não sendo...

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