sábado, 16 de maio de 2009

Descartável

Hesito sempre antes de deitar seja o que for nos contentores do lixo. Aliás, a verdade é que coisa minha só tem esse fim depois de grandes lucubrações e esforço intelectual, em que tento imaginar todos os futuríveis nos quais ela um dia ainda poderá ter utilidade. Pelo sim pelo não, guardo-a, geralmente. E se de todo não a posso guardar, tento oferecê-la...a quem seja tão problemático como eu quanto ao lixo, mas tenha mais vazios ocupáveis debaixo de telha.

Desta forma não é de admirar que os espaços em que me movo, quase sempre de lado para não deitar nada no chão, se pareçam muito com o caos primordial. Jornais velhos, papéis velhos, roupas velhas, recordações velhas, móveis velhos, garrafas velhas e coisas velhas em geral, nesta minha casa é sabido que encontram refúgio, e como a notícia deve ter corrido de porta em porta, é a ela que se dirigem quando em perigo. Não me queixo, porque ainda há bem pouco tempo e desta forma uma esplêndida cama antiga, com bonito trabalho de talha e bordados de madeira escondidos debaixo de muitos anos de poeira e casulos de aranhas, com os pés carcomidos e consequentemente meio cambada, veio parar às minhas mãos; algumas limpezas e pezinhos novos depois, o certo é que já rebrilha e se prepara para receber o sortudo que nela se reclinará um dia destes.

Num mundo onde o novo é rei, mesmo que seja de inferior qualidade, devo ser excêntrica; num modo de viver onde impera o bota abaixo e o faz de novo, a própria casa que guarda a cama e mais mil outras velharias é um velho granel reconstruído...Mas onde teria eu paredes tão grossas? Onde um ar tão imponente e altaneiro? Onde um pátio lajeado, onde uma escadaria de pedra tão bem lançada? Quis-me parecer que numa casa nova tais requintes jamais seriam para mim, que não sou aparentada com o Bill Gates. E assim reconstruí a velha...para grande espanto de alguns, que teriam demolido irremediavelmente o monte de pedras e no seu lugar levantado um caixote de betão, muito provavelmente equipado com as frias ventanas de alumínio.

E se me recuso a aceitar sem discussão que um objecto velho e à primeira vista imprestável seja oferecido sem remédio ao holocausto das lixeiras, como poderei concordar com esta mania, hoje muito generalizada e já muito encarada como procedimento natural, de botar fora as próprias pessoas? Aflige-me mas é que os meus netos vivam num mundo onde os seres humanos se tornaram tão descartáveis como os tinteiros das impressoras – que, esses, até eu dou ao lixo (para reciclagem), e mesmo assim somente depois de ter guardado uns dois ou três para ilustração das gerações vindouras, já se vê...

1 comentário:

  1. Não és excêntrica, não. Pelo contrário tens a tua sensibilidade edificada sobre o valor histórico, lapidada pelo bom gosto e ornamentada pela bondade, pelo carinho e pelo amor. Talvez por essa razão também quando, à boa maneira de tantas velharias que te deixam à porta para as recolheres e reciclares, o vento norte, ou espuma do mar te trazem, mesmo que seja apenas à memória, um velho mas verdadeiro amigo que seja, lhe constróis de imediato um pedestal de marfim, lhe colocas um diadema de prata e, sentando-o num trono de cristal, a teu lado, estendes-lhe a passadeira da amizade e ergues, bem alto, uma taça de ternura.

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