domingo, 24 de maio de 2009

A estrada tem de passar (1)

Diz-se que somos um povo de brandos costumes – e é capaz de ser verdade, ma non troppo. Há limites que não podem ser excedidos sem que o caldo se derrame, e vários exemplos o atestam…

Mas o que mais vezes acontece é ficarmos molemente a ver o que se passa sem interferir nem nada dizer, que aqueles senhores tão bem falantes decerto sabem o que fazem e eu não entendo nada disso (nem quero entender, que dá trabalho). Por certa preguiça e comodismo e, pior, por acharmos talvez que este mundo não é nosso mas sim deles – e porque o seria? lá nos vamos excluindo das decisões, quando não as aplaudimos como basbaques mesmo sem, no fundo, com elas concordar.

Tudo isto, e o mais que virá, por causa de uma pequena notícia saída n’ O NORDESTENSE de 31/10/1888, e que transcrevo:

“Um destes dias deram começo à demolição do adro de Nª Srª da Conceição por onde deve passar a estrada real entre esta Vila e a freguesia de S. Pedro do Nordestinho.”

E o primeiro pensamento que me cruzou a cabeça foi: e o povo deixou demolir o adro? Deixou. Há-de ter pensado que tinha de ser, e que aqueles senhores é que sabiam por onde haveria de passar a estrada, bem inestimável – e esta parte não discuto.

Confesso-vos que a primeira vez que me confrontei com obras públicas foi a propósito de uma terra que meu pai do seu herdara e em grande estima tinha. Terra pequena, mas arável e funda, depois de muitos trabalhos de rebentamentos e limpezas que por lá se desenrolaram – sobretudo à mão.

É pacífico que, à mão, o bicho homem pouco mal pode fazer à nossa mãe natureza, que o dotou de membros e músculos de segunda, se com outras espécies animais o compararmos. O pior pode acontecer é quando vêm as máquinas com as fortíssimas garras de ferro, conduzidas por más cabeças, na mira do imediato e de alguns votos a mais.

Fora decidido melhorar o caminho, coisa em si excelente; toca pois a avançar com as ditas por sobre os muros de pedra cobertos de musgo, e a seguir pela terra dentro, onde o milho crescia nos tempos de meu avô. O caminho definitivo levantou-se perante o cerrado, deixando-o rebaixado e desprotegido, pois não foi entendido por necessário reerguer a parede a alturas convenientes. Mesmo para quê? Os donos não estão cá.

Pois não, mas um dia chegaram. Fui fazer as visitas do costume: à campa de meu pai, onde os seus ossos repousam à sombra da igreja onde foi baptizado, e à sua terra de grande estimação. Quem autorizou “isto”? Ninguém autorizara nada, nem aparentemente fora sentida a necessidade de autorização fosse de quem fosse. Instintos básicos, territoriais, agitaram-se dentro de mim, e em grande revolta subi a freguesia; e foi então que me disseram a frase que encabeça estas linhas: olhe que a estrada tem de passar!

Reclamei, por verbo falado e escrito, recebi promessas de indemnização e de arranjo, jamais cumpridas mas sempre renovadas - e o tempo foi correndo e amaciando os contornos da nova parede e da estrada. Outros homens, ao longo dos anos, cultivaram a terra, voltaram a limpá-la e combateram as silvas, que não deixam de aproveitar as ocasiões. E hoje quem por lá passe talvez suponha que sempre assim estiveram as coisas, se é que algo lhe chama a atenção. Um belo dia, a necessidade obrigou; vendi a terra.

Muitas lições aprendi com a terra e a estrada. Na verdade, esta não “tem de” passar; a sua passagem foi decidida por homens tão falíveis como nós, e quiçá ainda mais ignorantes até do que nós, mesmo que animados de boas intenções. Só raramente é que não será possível a consideração de trajectos alternativos, que prejudiquem minimamente o trabalho já realizado. Depois, mesmo que passe, não tem de passar assim, uma vez que pode passar na mesma com o devido respeito pela obra e propriedade alheias. Mais: passará ao abrigo de leis que é possível fazer cumprir, existindo mecanismos para o efeito; claro que também os há em sentido contrário, sendo destes o principal o cansaço que leva a desistir no meio da burocracia e das maçadas mil. E outra: o tempo é bom curandeiro…mas há males que só abranda.

Que passem as estradas, e várias outras coisas, pois são necessárias e boas. Mas que passem debaixo dos nossos olhos atentos: quem as mandou passar é igualzinho a nós. E tão capaz como nós de fazer asneiras.

E por falar em asneiras e em estradas, devo ter sentido o cheiro da pólvora, pois não resisto a apontar-vos mais uma: vejam só a inclinação do piso de certas vias de circulação que por aí foram feitas, nas curvas, e digam-me lá se quem as fez terá aprendido física (básica) nos bancos do liceu. É de supor, no mínimo, que faltou a essas aulas…e que não faz a menor ideia do que possa ser a força centrífuga, embora decerto já a tenha sentido na pele muitas vezes.

Mas, mesmo assim, foi-lhe reconhecida autoridade para traçar e executar uma estrada.

1 comentário:

  1. O escritor inglês, Samuel Johnson, (sec. XVIII) escreveu um dia: "Não esperes que teu barco chegue, nada em direcção a ele." Por isso é que, como dizes, não devemos ficar “molemente a ver o que se passa sem interferir nem nada dizer.” Pena que nem todos entendam, tão bem como tu, aquela máxima. Mais uma vez parabéns por este excelente texto.

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