Muitas e caudalosas ribeiras por aí há. Encorpadas nas chuvas do inverno, descem dos montes, poderosas e indomáveis, obedecendo às leis eternas que hão-de solicitar as águas e o resto para o centro da terra, até que tudo fique plano – mundo estranho esse, que já não será para nós. Por enquanto o nosso ambiente é de desníveis e de erosão, e assim será durante muito tempo ainda.
Sendo vasto o território do homo sapiens, e percorrendo-o este continuamente de um lado para o outro, teve de lançar as pontes sobre as ribeiras e os rios, reconstruindo teimosamente e combatendo sempre as forças imensas a que os outros animais se limitam a adaptar.
Esta pequena história fala de uma ponte sobre uma grande ribeira. Conheço-a e temo-a; terrores subconscientes, fruto decerto de muitas conversas ouvidas versando a sua capacidade de destruição levam-me, ainda hoje, a acelerar sem dar por isso, safando o carro e o corpo de tão perigosa vizinhança, mesmo nos dias em que a ribeira, a que chamaram apenas Grande, se limita a sussurrar, dolente e mansa, por debaixo dos meus pés e da ponte - novinha em folha.
Durante muitos e muitos anos fora a torrente levando consigo, para o mar que ali fica próximo, os pontões de madeira construídos ora mais acima ora mais abaixo, à mistura com os moinhos destruídos e os troncos das árvores arrancadas pelos matos, e mais o que encontrasse pela frente. A estrada, essa, findava respeitosamente, a certa distância das águas; pessoas e bens eram transportados pelos pontões, enquanto estes resistiam, e recordo-me de ter tido honras de colo e de rede nessa travessia, aí pelos meus quatro ou cinco anos. Dificuldade real, era fazer passar as bestas, salvo seja; esticavam as patas, aterrorizadas com o troar das águas por debaixo, e não atravessavam mesmo. Esgotados todos os argumentos possíveis, dos quais o principal era a pancadaria, não de criar bicho, mas de suar sangue, fenómeno que várias vezes ocorreu para grande espanto daquela boa gente e comparações não muito elegantes com Nosso Senhor no Jardim das Oliveiras, alguém se terá lembrado de tapar com uma froca os olhos e ouvidos dos animais de modo a que, ignorantes do perigo, lá fossem andando e carregando malas e bagagens, e assim passaram a fazer.
Situação insustentável, um belo dia chegaram engenheiro e capatazes, carregados de cálculos e cadernos de encargos, acompanhados pelas inevitáveis máquinas e de um formigueiro de trabalhadores: finalmente se faria a ponte de pedra e cal, aliás já de cimento armado, e continuaria a estrada para servir as pobres freguesias a poente, entaipadas contra o mar.
Muito aplaudida a iniciativa, e para menos não era o caso, os populares acompanhavam interessados a grande movimentação e a acumulação de enormes pedras destinadas à protecção da ponte, enquanto a mesma se ia desenhando. E contaram-me que um velho da freguesia mais próxima, depois de muitas horas passadas em silêncio, a observar os trabalhos e a actividade desenvolvida, disse pausadamente na sua fala cantada, enrolando o cigarrinho: mal empregado trabalho, em Novembro estará tudo lá em baixo – lá em baixo, ou seja, no fundo do mar.
Engenheiro, capatazes e trabalhadores ficaram primeiro pasmados com o atrevimento, depois ofendidíssimos. Os cálculos, os cálculos! Os cálculos estavam todos ali, e todas aquelas obras lhes obedeciam. Como ousava um rústico proferir tamanha enormidade? E depressa o puseram no seu lugar de velho lavrador analfabeto, tendo chegado (segundo me contaram) mesmo a exibir os cadernos cobertos de hieroglíficas charadas, e a repetir os termos difíceis com que a hidrodinâmica se regala.
Talvez pelos olhos do velho tenha passado então um lampejo de piedade e compreensão por esta ingénua vaidade que leva as pessoas a pensar tantas vezes que sabem alguma coisa: Oh, meu senhor, eu desses garranchos não entendo nada, mas esta ribeira conheço-a desde que me lembro!
E os trabalhos continuaram como se nada fosse. Nas chuvadas seguintes, a Ribeira Grande tudo arrastou para o mar, tal como se vira acontecer durante muitas décadas – desde sempre. Levantaram outra ponte; essa já durou mais algum tempo mas acabou também por ser arrastada. A penúltima durou trinta anos, e viria a ser destruída em 1995, numa terrível cheia de que ainda nos lembraremos um pouco por todas as ilhas.
Neste momento a ponte é nova, outra vez, alta e construída segundo as tecnologias mais recentes, que incluirão uma respeitosa distância das águas da ribeira, que lá vai sussurrando por debaixo, como um tigre a fingir que é gato. No leito, bem à vista dos passantes, enorme rochedo revolvido, sobre o qual em tempos existiu um moinho; deste, só a memória dos residentes. Saio dali o mais depressa que posso.
Sou contra os engenheiros, as novas tecnologias e os progressos da ciência? Não, que Deus me defenda. Acho-os utilíssimos e não é por acaso. Mas que tal dar uma olhadela, meus senhores, já agora e de vez em quando, ao saber de experiências feito?
Afinal, também é ele que é ensinado nas escolas e nas universidades…embora nem sempre se dê por isso.
Froca – Regionalismo. Camisa de cotim que se usa em vez do casaco.
Garranchos – Talvez um brasileirismo. Neste sentido: os símbolos escritos, parecidos (aos olhos do velho) com galhos tortuosos.
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Como tu, eu também estive em África, embora em espaços diferentes mas em tempo simultâneo. Estranhei inicialmente ver, quer nas pequenas tabancas quer em grandes aldeamentos, um ancião designado por “o homem velho”, sentado no centro do povoado, respeitado e consultado por todos os que tinham dúvidas ou necessitavam de conselhos. Foi então que percebi aquele provérbio africano: “Em África, quando morre um velho queima-se uma biblioteca”. Parabéns por mais esta bela reflexão.
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