domingo, 28 de fevereiro de 2010

Apoiado!

Reconstruir À semelhança do que foi feito antes repetirá os trágicos efeitos
Data: 28-02-2010

Sábado dia 20, a Natureza avançou em ataque combinado das diversas forças. Depois de uma noite de aturada flagelação pluvial, a precipitação disparou na alvorada e os batalhões marcharam para a vertente sul da Madeira. Às primeiras horas da manhã, derrocadas e deslizamentos ruidosos carregaram em simultâneo sobre as populações das cotas altas e médias, levando consigo corpos humanos, casas e carros. Caudais em fúria aguilhoados por chuvas diluvianas desceram das faldas da cordilheira central e entraram na capital com imprecações de guerra, galgando muralhas e mainéis à força da água, calhaus e penedos. O bombardeamento de uma artilharia dissimulada abatia pontes e desfazia estradas. Horas de pânico.

A contagem de mortos enlutou a semana. A angústia de encontrar o pior nos escombros, na água estagnada dos parques de estacionamento, nos carros soterrados. Brigadas de operacionais a arriscar a vida para salvar cidadãos ainda em perigo. Pânico por todo o lado à conta de boatos irresponsáveis. O Funchal perdeu o bulício alegre de cidadãos e trânsito. Ruído das escavadoras a desobstruir leitos empedrados em desesperado contra-relógio antes da réplica de ataque, anunciada para ontem, e que não se confirmou. Rostos carregados, conversas sem nexo, desmoralização nas ruas argamassadas. Fins de dia em cenário tétrico. Cidade com cheiros inauditos, entregue aos homens e mulheres da recuperação e limpeza, câmaras de TV em busca de exclusivos, luzes bruxuleantes reflectidas no lamaçal. Esta não é a nossa cidade que fulgura ao sol e à chuva.

Chora o camponês: os da serra são escravos, a ajuda vai toda para os da praia. Assim se lamenta diante de uma câmara de televisão o homem cumpridor dos impostos que, para sustentar a família, trabalha ao sereno, ao sol ou ao frio das alturas, nos lombos e encostas, cabeços e serrados. Eis que, num repente, fica sem nada. Já não precisa de atravessar a geada para levantar bardos, regar poios, podar o corredor de vinha, afincar estacas, abrir regos e mantas, semear, ir à erva em atenção ao gado, rechear o gamelão, encaixar na molhelha a saca de batatas para fazer algum dinheiro. Sempre se contentou com uma sopa de couves e o tal belisco de pão, mas agora a Natureza, sempre tão bonita nesta Madeira, levou-lhe tudo. O homem do campo pede ajuda, sempre foi um bom homem. Digno com o fato da missa, ouve os fidalgos que o abordam no adro da igreja em tempo de votos, apesar de saber que depois nenhum desses casacas da cidade lhe dá uma fala.

Há ajudas prometidas de todo o lado. Mais do que as ofertas de 'umas roupas' do milionário Berardo, mais do que as verbas grotescas muito inferiores ao valor dos tempos de antena que elas proporcionaram a bancos que ganham muito na Madeira, mais do que essas e outras, há todo um País empenhado em ajudar. A União Europeia, muitos países. Até Timor, em retribuição do tostão que um dia lhe negaram.

A dúvida está no feitio dos homens. Se serão capazes de ultrapassar questões pessoais, políticas e partidárias para se lembrarem dos comerciantes em desgraça, de quem perdeu casa e carro, mas também dos camponeses que só não são 'vilões' durante as campanhas eleitorais. Perdemos 42 conterrâneos e aí não há auxílios que neutralizem os prejuízos no íntimo de todos nós. Ironicamente, a Madeira parece voltar à 'estaca zero'. A mais obras primárias - casas, estradas, pontes e correcção de ribeiras, falésias e encostas. Quando se falava de um novo ciclo, surge da tragédia novo fôlego para os abencerragens do jardinismo desenvolvimentista. O regresso dos falcões da construção.

Para chegar a todos, e depois do sucesso inconcebível na primeira semana de trabalhos, a reconstrução precisa da boa vontade dos homens. Já se percebeu que quem tem o poder de decisão faz ponto de honra em que toda a gente saiba quem é que manda. Resolvido o conflito com José Sócrates e o Governo Central, o presidente da Madeira acentuou estes dias que é preciso ter bem presente esse aspecto. Nas duas entrevistas em três dias que a RTP nacional lhe propiciou, para dizer o que quis e entendeu, o chefe do governo vincou vezes sem conta que é o 'coordenador das operações'. Que fez as estradas e as pontes que não caíram, em contraste com as da Madeira velha. Que vai reconstruir estradas e pontes. Que já deu ordens para alargar ribeiras aqui, altear muralhas naquela margem, abater a rotunda acoli, mudar de estrada para túnel além, substituir casas familiares por um bairro social na Serra de Água. Eu fiz, eu construí, eu faço, eu digo como é. Reconhecendo que o chefe manda e que tudo o que não seja dito pelo chefe é um 'delírio', mesmo dentro do PSD, apresentemos um singelo pedido. Que o chefe dê as suas ordens de maneira a que toda a gente perceba quem é que continua a mandar nisto, mas depois, sem que esteja em causa o seu talento pluriforme, deixe os especialistas elaborarem projectos e dirigirem as obras no terreno. E que o chefe só reapareça na inauguração, para o foguetório, 'seco' e espetada.

O povo já deve ter percebido que não deu bom resultado decidir 'planos de obras' no adro da igreja, como nas 'presidências abertas' dos anos 90. Os projectos enrolados em papel vegetal atirados para o lado e a escola mudada para a banda de cima por proposta da sra. Maria, mais a estrada desviada para o lado do ribeiro para fazer a vontade à família Freitas. A democracia directa é um ideal que precisa de regras. E o povo percebeu também as consequências de construir casa em qualquer encosta perigosa hasteando a bandeira do PSD aos primeiros blocos para que, à distância, o fiscal da Câmara veja o 'licenciamento'. A precipitação na Madeira dia 20 em qualquer caso faria grande desgraça, mas seria possível atenuar as consequências.

Os tempos mudaram e certamente, depois desta tragédia, não teremos uma governação nefelibata, distante da realidade do tempo novo. Já não é possível, por exemplo, esconder ao mundo o que por cá se passa. O povo até adoraria que se pusesse em debate a questão ambiental da Madeira, ouvindo até os 'teóricos da bica'. Cruzar todas as correntes de opinião podia ser importante, quem sabe se de entre os 'tontos fundamentalistas' não surgiria uma ideia que ao menos meresse discussão? O povo, nas suas cogitações angustiadas, aceita que o chefe do governo mande, mas que mande sem teimar em fazer tudo como fez antes só para contrariar os 'inimigos da Madeira'. Que os despreze, mas evite resultados como os que estão à vista. Até porque tratar de 'secções de ribeiras' e 'leitos de cheias' distrai da função política.

Mesmo para os adversários do determinismo, quando se trata da Natureza é difícil derrubar o princípio de que 'nas mesmas circunstâncias as mesmas causas produzem os mesmos efeitos'. Na sua sabedoria popular, o ora necessitado e fragilizado povo diz que 'os homens erram, os grandes homens reconhecem que erram'.
Luís Calisto

Sem comentários:

Enviar um comentário