terça-feira, 14 de abril de 2009

Domine, non sum dignus...

José era um menino forte, inteligente e bonito. De boa estrutura orgânica, escapou com vida, enquantos os seus cinco irmãos mais velhos, como ele todos Josés, tinham descido a rua empedrada nos seus caixõezinhos de cedro, de branco alvaiados. Nos primeiros anos do século, José frequentou a escola primária, deliciando a senhora mestra com as suas capacidades e facilidade na aprendizagem – pois este menino deveria continuar os estudos, Sr. António ! Mas o sr. António (aliás, ti’Antonho do Alagoeiro) não podia prescindir dos serviços do filho varão nos duros amanhos das terras e do gado, e já se vê que José se ficou pela freguesia, agarrado ao cabo da enxada e à rabiça do arado, quando não à temível aguilhada, conduzindo os bois.
De menino, José transformou-se rapidamente em rapaz e homem feito : corpo alto e atlético, mãos nodosas e grandes como maços, belo rosto e olhos sombrios, um perfeito e eficiente lavrador que decerto teria casado com a moça mais prendada, formosa e rica do lugar, se os seus planos esses fossem. Mas não eram. Aos vinte e um anos, viajou para a ilha Terceira para a prestação do serviço militar, por lá acabou os estudos primários e ingressou no Seminário. Ti’Antonho e sua mulher alegraram-se à perspectiva de um filho padre, bênção familiar a colmatar a falta que os fortes braços lhes fariam nos duros trabalhos do costume. E um belo dia ele voltou, revestido da glória de feitos intelectuais – tão inteligente, tão bom aluno, fora convidado a leccionar no próprio Seminário ! - para dizer a missa nova na velha igreja de São José ; cheia à cunha, a freguesia em peso lhe foi beijar a mão.
Seria colocado na Vila, a coadjuvar dois padres mais idosos.
Ora José, apesar de padre, continuava a ser o que sempre fora : forte, inteligente e bonito. A cultura adquirida nos livros e no convívio não lhe fizera perder o substrato do lavrador ; José apesar de padre ia lavrar com os lavradores, caiar a Igreja com os caiadores, à pesca com os pescadores e até derrubar, em amigáveis contendas, os homens que com ele mediam forças na praça. Até se disse que foi o único a conseguir mover o sino grande, em competição alargada a toda a vila, no adro da igreja. É possível. Naqueles recatados tempos, homens e mulheres iam ao banho separadamente, mas as moças da Vila ao que parece iam espreitar o senhor padre José, de bonito corpo, cortando as vagas do porto em grandes braçadas.
José cantava e tocava órgão na igreja, acrescentando mais um ponto aos seus outros atributos com a bela voz de tenor, educada nos solfejos e nas harmonias, enquanto os homens ouviam agradados e as beatas e moças enxugavam as lágrimas do sentimento.
Tantos sucessos e a adoração do povo pelo padre que era parecido com o povo e não uma florzinha de estufa estiolada e tremelicante devem ter feito a sua mossa nos colegas, e pensa-se que a calúnia tenha saído precisamente dos dois padres que José coadjuvava. Havia uma donzela no lugar que se demorava muito tempo, demasiado tempo, na confissão ; e é feita à diocese a queixa de crime hediondo, de que um jovem sacerdote dava a absolvição à própria amante!
José é castigado, se não pelo pecado – que jamais se provou – pelo menos por ter sido veículo, mesmo que inocente, de escândalo. É expulso da paróquia, e transferido para uma outra, lugar humílimo, ainda mais rural se possível e em todos os sentidos mais pobre. Nela serviu vários anos, dizendo os mesmos sermões de maravilha, pescando com os pescadores, caiando com os caiadores e lavrando com os lavradores. As mãos cada vez mais nodosas, o olhar cada vez mais sombrio. Voltou a mudar, já a seu pedido, de paróquia ; mudou de novo, de novo, de novo. Chegou a dizer-se que além de muito sabedor seria santo, pois nas visitas a paroquianos doentes e obviamente pobres apareciam milagrosamente notas de banco debaixo dos travesseiros poídos – mas estou certa de que José é que as metia lá, quando ninguém estava a olhar.
Muito teria José gostado de continuar os seus estudos em Roma, meto-me eu a adivinhar, pertinho do papa (quase mais perto de Deus!), rodeado da fina flor cultural e artística da humanidade. Mas não. Outros foram mandados para Roma, José não. Certo é que lá foi uma vez, numa excursão baratinha, e foi tudo. Com o pouco que sobrava das deixas sob os travesseiros, foi comprando livros...e mais livros, que leu, estudou, sublinhos e anotou, enquanto a parkinsoniana avançava pela calada. E um dia morreu.
As voltas da vida fizeram com que os livros de José, aliás Padre José, viessem parar às minhas mãos. Vejo os sublinhados, leio as anotações; quase penetro no espírito do gigante. Mas, Senhor, eu não sou digna...

&/10/2008

2 comentários:

  1. Digna, bonita e carinhosa homenagem. Faltam muitas outras… Mas o espólio de “Valério Florense” está em boas mãos.
    C.F.

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  2. Cara Prima,
    Já me baralhei e não sei se não terei mandado, antes deste, um outro comentário.
    Há muitos anos tentei contactar-te, mas perdi-te o rasto.
    Podes usar o meu e-mail alvesdefraga@gmail.com para escrever.
    Gostei muito do que li.
    Um grande abraço

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