segunda-feira, 13 de abril de 2009
O Príncipe
António Luís descendia dos primeiros povoadores da ilha, no dizer do historiador homens corpulentos e nervudos, e de muitas forças, como bons e generosos africanos e portugueses antigos no falar e no trato, e nasceu em 1870, honrando até no físico as qualidades dos seus antepassados. Nunca foi à escola e, ainda rapazola, embarcou pelo alto para a América, a bordo de uma escuna. Uma vez lá, foi ter à Califórnia, onde ajudou a construir o relrôde e durante muitos anos pastoreou ovelhas pela serra Nevada, raifle na mão e olho atento aos caiotes, aos ladrões e aos índios. Acompanhado pelos fiéis cães, dava combate aos anteriores bem como aos temíveis grizzles e pumas, bicharada que a movimentação das ovelhas atraía. Trabalho sazonal, ia vendo os colegas gastarem nas cidades como Treiça, Tarloque e Los Angeles, as águias duramente ganhas, o regresso adiado à terra natal; propôs então ao patrão que o mantivesse no rancho por comida e dormida na época fraca, a só ia à cidade quando se tornava estritamente necessário, como na ocasião em que o foram buscar por causa de um fortalhaças de saloon que se gabava de partir a cara de todos os sanabaganas portugueses que encontrasse, e que, depois disso, terá sido forçado a mudar de opinião.
António Luís voltou à sua terra depois de quinze anos, com os mesmos sapatos do Lajedo que levara, mas bem cheio o belto das águias. E também tão português como fora, pois recusara-se a tirar os papeles que o transformariam em americano. Comprou algumas terras, e tratou de as valorizar, limpando e rebentando as rochas. Olhou à sua volta, e viu Maria Luísa…
Era bonita, prendada e sua prima. Falou com o tio, e este apesar de tudo foi mais honesto do que Labão para com Jacob: Maria Luísa? se queres casar, casa com Maria de Jesus, que é mais velha.
Não passou pela cabeça de nenhum dos três contestar a autoridade do tio e pai. E deste modo António casou com Maria de Jesus, que era também bonita e prendada. Tiveram vários meninos todos Josés, que foram percorrendo as ruas da freguesia nos seus pequenos caixões, até que um deles escapou, e depois deste mais sete filhos, entre rapazes e meninas. Maria Luísa emigrou também, só regressando depois de velha, madrinha de todos os sobrinhos, e já então por todos chamada Mar’quinhas d’Amer’ca.
À medida que passavam os anos, António foi-se tornando ti’ Antonho Luís do Alagoeiro, do lugar onde comprara a casa com as últimas águias da Califórnia. Trabalhava as terras, fazia as grades, as aivecas e os arados, caiava a casa e acendia o lume à forja, batia o ferro em brasa. À noite, conduzia as orações familiares: Padre nosso que estais nos céus…perdoai-nos as nossas dívidas como nós perdoamos aos nossos devedores…dai-lhes Senhor o eterno descanso…entre os resplendores da luz perpétua. E depois, à luz da candeia, contava mais uma vez a quem estava e chegava as histórias da América: a tosquia na primavera depois do inverno nos planos, as façanhas do Big Frank, do Serpa da Ponta, do Cardoso, do Serpa da Via d’Água, do Francisco Margarida, do J’sé das facadas, do J’sé inglês…e as suas próprias. Os ouvintes arregalavam os olhos imaginando o grizzle, que de pé era tão alto como ti’ Antonho Luís, o puma com a pata presa na armadilha para caiotes, rugindo e tentando libertar-se, os índios montados nos rápidos cavalos a fugir dos cães do pastor e do raifle que lhe sabiam certeiro.
Ti’ Antonho Luís salvou muitos franceses no naufrágio da barca Bidart, nadando até ao navio encalhado no meio do temporal, com uma corda amarrada ao peito pela qual os náufragos se guiaram para terra. No dia do incêndio em casa do foguista, entrou nas chamas para retirar primeiro o homem, depois os barris de pólvora e enxofre. Também se atreveu ao pântano da Caldeira Branca, onde fora com outros homens da freguesia procurar o cadáver de ti’ Ana Tenenta, que se deitara a afogar, e isto para que os passantes nocturnos não tivessem medo do local; mas dizia-se na freguesia que nunca o tinham conseguido resgatar, e que o caixão que traziam só continha pedras.
Saía com o seu barco para o mar, pescava chernes e os afogados, quando não chegava a tempo de os pescar com vida; com bom tempo, em cima do ilhéu Monchique até dançava a chamarrita. Cercava as ovelhas no mato, nos dias de fio, e ia à Vila buscar remédios para os doentes nas ocasiões em que os ventos sopravam pela Rocha com tal violência que mais ninguém conseguiria passar, rastejando de borco sobre os musgos e as queirós.
Aos seus rapazes, antes de irem para a escola, ensinava apenas uma antiga e simples regra de bom viver: vossemecês nunca sejam os primeiros a começar uma briga; mas se eu souber que alguém vos bateu e não se defenderam, olhem que quem vos chega sou eu! Ao que parece, nunca foi necessário. Mulher, só teve aquela que recebera da mão do tio e do padre da freguesia.
Ti’ Antonho do Alagoeiro assistiu à missa nova do seu José, e à frente da família, antes de todo o povo, subiu até ao altar para beijar a mão do novo sacerdote, ministro de Deus e seu filho. O alto corpo curvado, o rosto triste e fechado, o penetrante olhar apagado, para estranheza das crianças ao ver as lágrimas dos comovidos conterrâneos à sua passagem. Um homem da freguesia fizera-lhe, pouco antes, o que os índios, os ladrões, os grizzles, os caiotes, os pumas, o relrôde, a serra Nevada, os valentões, os maus pagadores, os enrediadores, o mar, o fogo, o vento e a Rocha não tinham conseguido: obrigara-o a baixar a fronte de vergonha e mágoa, desonrando-lhe a filha, ingénua como uma criança. Maria viria a dar à luz um menino, e no intervalo de uma semana morreriam ambos, a mãe do parto e o filho de inanição. Ao ter conhecimento da desonra, que muito a medo lhe foi participada, pegara na aguilhada sem dizer uma palavra e começara a descer a rua a caminho da praça. Aos gritos da mulher, amigos e vizinhos tentaram demovê-lo de fazer justiça por suas mãos; mas apenas um argumento, lançado pelo regedor, o deteve: António, se matares aquele bandalho, nunca o teu filho poderá ser ordenado padre…
Então foi-se com os cães para o Rochão Grande, onde só os zimbreiros o poderiam ouvir reclamar a justiça de Deus. E o nevoeiro cobriu-lhe o rosto de água… ou talvez tenha chorado nessa ocasião.
Nunca mais dançou a chamarrita em nenhum lugar. Um dia, lavrava nas Queimadas quando se ouviram gritos na Rocha. Correu, saltando os muros de pedra, e um dos filhos viu-o de repente encolher-se e agarrar a barriga, depois endireitar-se e continuar a corrida até onde estava um grupo de conterrâneos a preparar-se para arrastar pelo carreiro abaixo um velho morto, caído no atalho estreito e íngreme. António pôs o corpo do velho às costas e com uma mão o segurou, com a outra a barriga, e assim o trouxe até à freguesia. A hérnia estrangulou e gangrenou. Delirava, no meio da febre altíssima; supondo-se metido numa fogueira, da qual já não conseguia sair por seus próprios meios, apostrofava a chorosa família: oh gente ingrata, que não me tirais deste lume! O filho mais velho deu-lhe a extrema-unção, e poucas horas depois a morte chegava.
Ti’ Antonho Luís do Alagoeiro era o pai do meu pai. Disseram-me que lhe chamavam o Príncipe.
Corruptelas: algumas são óbvias. Outras menos óbvias:
Relrôde: caminho de ferro (de rail road)
Raifle: espingarda (de rifle)
Caiote: espécie de pequeno lobo (de coyote)
Grizzle: urso pardo (de grizzly)
Treiça: Tracy
Tarloque: Turlock
Sanabagana: filho de…(de son of a gun)
Belto: cinto (de belt)
Planos: ? (do espanhol planícies?)
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Parabéns! Conheço parte desta maravilhosa história. É um “in memoriam” deliciosamente belo. Bem haja a neta, que vivendo longe, no espaço e no tempo, conhece e descreve tão bem a vida do “avô do Alagoeiro”, que morava naquela casa em frente à qual havia um enorme poço onde o gado bebia água e ao lado do qual os homens colocavam os molhos, os cestos e as latas de leite que traziam às costas, para descansar em amena cavaqueira.
ResponderEliminarC.F.
Obrigada, Carlos.
ResponderEliminarMas como é que já encontraste o meu novo blog? Que rapidez!
Eu ainda estava a corrigir algumas vírgulas...
Decidi criar este novo blog, para o qual encaminharei alguns textos que já estão publicados no "miriamflores", que é o meu blog privado.
Pensava enviar-te o link, mas pelos vistos já não é preciso!
Abraço.