sexta-feira, 17 de abril de 2009

Eu, Diogo Cão, navegador...


Daniel (na cova dos leões) além de ser uma linda história bíblica é também o título dumas linhas que já noutro local coloquei, e em que tentei falar da minha mágoa por aqueles que tinham ficado na terra há tantos anos castigada por guerras, e que assim continuaria por muitos! Oh Daniel, a gente nunca mais se há-de ver neste mundo! É, D. Maria da Glória, mas os senhores ao menos têm para onde ir - e de facto tínhamos, para o longínquo e fantasmagórico Puto, onde semanas mais tarde acabaríamos por chegar - com a roupa do corpo, mas vivos - e choravam ambos abraçados um ao outro, a pequenina professora já idosa e o alto rapaz africano, em momento de que jamais me poderei esquecer...todos os presentes choravam aliás.

Daniel não tinha como fugir da cova dos leões.

Se colocarmos o começo da guerra nas colónias em 1961 (annus horribilis) e o fim dos confrontos militares, pelo menos em Angola, em 2002, concluiremos que a maior parte dos angolanos vivos pouco mais conhece da vida do que a sua face mais sombria e sórdida, envolto que cresceu e viveu em pelejas sangrentas, humilhações várias e a decorrente fome omnipresente.

Terá sido esse o caso de Daniel, que hoje andará por volta dos 60 e poucos anos, mais coisa, menos coisa. Antes da guerra, a humilhação; durante a guerra, a guerra; depois da guerra, as minas terrestres e a fome.

Daniel e minha mãe foram os dois primeiros professores da escola do Sachole. Ao chegar ao Bailundo, vinda de Carmona, minha mãe concorrera aos quadros do distrito do Huambo; todas as vagas preenchidas, foi aberta aquela escola não duvido que especificamente para a senhora tão competente e bem falante, D. Maria da Glória do Puto! Como iniciou logo com as quatro classes, casa bem cheia de meninos e meninas (embora não existisse quarto de banho...) foi também colocado um professor, que vinha a ser o Daniel. De bom feitio, delicado e amável, de imediato minha mãe simpatizou com ele e o tomou sob a sua protecção.

O Daniel ia por vezes a nossa casa trabalhar com minha mãe. Perfeccionista, esta - talvez tendo percebido alguma deficiência nos conhecimentos do moço, apesar da boa vontade - tomou a peito preparar as lições com ele, enquanto iam conversando sobre isto e mais aquilo. Ouvi algumas dessas conversas; curiosamente, minha mãe nunca dava a impressão de estar a ensinar nada, parecendo sempre a conversa ser a de dois bons e velhos amigos. Eu bem a percebia, é claro.

A nossa sala, na casa onde morávamos no Bailundo, exercia conjuntamente as funções de sala, com um pequeno divã, escritório, com uma secretária onde geralmente trabalhava meu pai, uma estante, e mais ao fundo a mesa de jantar. Um aparador, se bem me lembro, e pouco mais teria. Nas paredes alguns quadros, invariavelmente de minha autoria.

Em tempos em que não existia televisão pelo menos por ali (em Lisboa já havia há alguns anos) os serões eram passados a ler, a estudar e a conversar, eu por vezes a fazer as minhas laboriosas pinturas - ficou notável uma colecção de retratos que fiz para ilustrar a Mensagem do Fernando Pessoa, todos pintados de modo algo incongruente ao som do Adriano Correia de Oliveira e mais do Zeca Afonso - entre família, ou com amigos. O padre Menezes era visita frequente, até que passou a ser diária e comensal, pois às tantas, todo contente, jantava connosco por sistema. Por vezes vinham outras pessoas, colegas da Escola, amigos dos meus pais.

Num certo dia estávamos só meus pais e eu, mais o Daniel. O Padre Menezes já se fora embora, acabado o jantar e os dois dedos de conversa (gostava muito de conversar com meu pai, e ria-se muito das tolices que eu dizia, dizendo tchá, tchá, mudemos para outro assunto!). Meu pai sentou-se à secretária na sua posição típica, mão a segurar a cabeça, olhos postos no livro de filosofia, eu sentei-me no divã a ler qualquer coisa e minha mãe na mesa de jantar, com o Daniel. A lição que estavam a preparar era de História de Portugal, que começa como se sabe pela descrição da península Ibérica e depressa passa para os lusitanos, antepassados dos portugueses, tribo de celtiberos que muito deu que fazer, ao que parece, aos conquistadores romanos.

Com os olhos ia percorrendo as páginas do meu livro, mas com os ouvidos escutava minha mãe a dissertar sobre os lusitanos, sempre a parecer que contava uma história de encantar. O Daniel ouvia atento, com os olhos muito abertos a rebolar por sobre as figuras do manual enquanto minha mãe ia dizendo: eles vestiam-se com peles de animais, já viu, Daniel, isto deve ser uma pele de búfalo (de auroque seria, mas a diferença não é grande) e alimentavam-se das raízes e frutos que collhiam pelo mato, olhe, isto não parece ser uma cenoura? Caçavam também com estas lanças...e setas, já reparou? eu estava de costas, mas imaginava a mão fina de minha mãe a percorrer as imagens coloridas. E às tantas o Daniel disse, como quem regressa de uma zona muito escondida da mente: ó D. Maria da Glória, mas então...os portugueses já foram selvagens, assim como nós?

Fez-se um silêncio pesado. Nem minha mãe encontrou que responder - pelo menos a princípio. O Daniel não o dissera com mágoa, mas tão somente com surpresa, pois surpresa revelava o tom da sua voz. Meu pai nem terá ouvido, imerso em mais alguma prova irrefutável da existência de Deus. As lágrimas vieram-me aos olhos.

Daniel teria uns vinte e poucos anos, nessa altura. Após quatro anos de instrução primária, cinco de liceu e dois de Magistério Primário, que teria ouvido dizer, em todos esses anos de estudo e escolaridade, o rapaz ovimbundo? Que os portugueses eram uma espécie de semideuses, fortes e invencíveis, sabedores omniscientes, potência europeia descobridora da maior parte do mundo conhecido, portadores da religião do próprio Deus dos brancos, tudo conhecendo e tudo podendo, enquanto os nativos como ele das terras viciosas de África não passavam de meros selvagens, que se não fosse a mão benevolente dos europeus do poderosíssimo Puto ainda se pendurariam nas copas das árvores como a macacaria, cheirando a catinga, rosnando e grunhindo como animais?

Preto matumbo!

Minha mãe, entretanto, recompusera-se e fora dizendo palavras de circunstância. Eu tentei disfarçar o melhor que pude, colocando-me ainda mais de costas para os dois. Nem de propósito, na parede à minha frente encontrava-se o retrato de Diogo Cão, legendado por mim com as belas palavras do poeta:

A alma é divina e a obra é imperfeita
Este padrão signala ao vento e aos céus
Que da obra ousada é minha a parte feita
O por fazer é só com Deus

E ao imenso e possível oceano
Ensinam estas quinas, que aqui vês
Que o mar com fim será grego ou romano:

O mar sem fim é português!


Esse dia acabou, como sucede a todos. Daniel foi para casa, decerto ainda ruminando na sua mais recente decoberta. Ora quem havia de dizer! Os portugueses, afinal, já tinham sido também selvagens...a certa altura! Meus pais comentaram entre si o sucedido, desgostosos. No dia seguinte o retrato de Diogo Cão fora arrancado da parede. E nunca mais voltou para lá.


Notas:

Puto - Portugal, assim lhe chamavam em Angola. Muene Puto: o rei de Portugal.
Matumbo - não sei se tem "tradução" exacta; o sentido é mais ou menos o de estúpido, bronco.

Que fique claro que nada tenho contra Diogo Cão, apesar de ter arrancado o seu retrato da parede. Coitado! Mesmo que culpa tem, seja do que for?

2 comentários:

  1. Ora aqui está uma excelente estória que dá bem nota do que foi a colonização portuguesa em todas as suas dimensões, desde a institucional até à mais privada e familiar. Uma estória cheia de um excelente humor "fininho".

    Gostei, minha prima.
    Um abraço

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  2. Obrigada, primo!
    Esta é mais uma das "histórias para os meus filhos" que ando a passar de um blog para outro...
    OUtras se seguirão, assim me ajudem o engenho e a arte...

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